Segurança nas cidades: Jane Jacobs e os olhos da rua

Dando sequência à série sobre segurança nas cidades (veja também o post sobre os espaços defensáveis), este post vai tratar do conceito de “olhos da rua” de Jane Jacobs, talvez o conceito mais famoso e consagrado no que diz respeito à segurança urbana.

Segundo Jacobs, as calçadas desempenham papel fundamental para a manutenção da segurança nas cidades. Quando dizemos que uma cidade não é segura, estamos nos referindo às suas calçadas.

As calçadas e os desconhecidos

O principal ponto da argumentação de Jacobs é essencialmente diferente do de Newman. Ela defende a presença de desconhecidos como importante:

O principal atributo de um distrito urbano próspero é que as pessoas se sintam seguras  e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos (JACOBS, 2000, p. 30)

Jacobs defende que a manutenção da segurança não é feita pela polícia (ou pelo menos não apenas por ela, que também é necessária), mas …

[…]pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados. (JACOBS, 2000, p. 32)

As baixas densidades não são a resposta. Os subúrbios americanos, vistos por muitos como lugares seguros, nem sempre o são. Jacobs sustenta tal afirmação com dados sobre Los Angeles (de 1958), mostrando que, apesar das baixas densidades, apresenta taxas muito altas de criminalidade.

As três condições para a segurança

Jacobs propõe, então, três condições para que haja pessoas suficientemente nas ruas de forma que elas exerçam a vigilância natural sobre os espaços públicos e, com isso, diminuam a violência:

  1. Deve ser nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado;
  2. Devem existir os olhos da rua;
  3. A calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente.

Separação entre espaço público e privado

Esse requisito não é muito aprofundado por Jacobs. Entretanto, ela diz explicitamente que a área a ser “vigiada” precisa ter limites claros e praticáveis. É uma crítica direta aos ideais modernistas, então em voga, de construir edificações sobre pilotis soltas sobre amplas áreas verdes, de forma que os espaços públicos permeassem todo o bairro. Jacobs parece entender que tal configuração é prejudicial à segurança porque “borra” os limites do que é visto como responsabilidade de cada pessoa no que diz respeito à vigilância natural.

Olhos da rua

Os olhos da rua são as pessoas que, consciente ou inconscientemente, utilizam o espaço público e/ou costumam contemplá-los de suas casas, exercendo uma vigilância natural sobre o que ali acontece. Jacobs cita como contra-exemplo alguns edifícios muito verticalizados, em que os corredores eram inacessíveis aos olhos, apesar de serem de acesso público, e por isso sofriam enormemente com a depredação e a violência.

Quando as ruas não possuem “olhos”, tornam-se inseguras. (Condomínos fechados em Campo Grande – MS)

Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem supreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa (JACOBS, 2000, p. 52).

É importante que os edifícios tenham relação com a rua, para poder existir a vigilância natural.

Portanto, os edifícios precisam oferecer a possibilidade de contato visual entre o interior e o espaço público, para que os olhos possam atuar. Esse ponto é apenas rapidamente abordado por Jacobs, ao menos de forma explícita, mas fica claro na sua descrição sobre como os olhos da rua agem em determinadas áreas da cidade. Confusões, brigas e outros incidentes nesses bairros são rapidamente controladas ou inibidas pela ação de moradores que observavam o que acontecia de dentro de suas casas. Além disso, a necessidade de contato das edificações com o espaço público é um dos pontos de consenso entre Jacobs e Newman que, de resto, possuem concepções diferentes sobre os requisitos para a segurança nas cidades.


Os edifícios devem possibilitar os “olhos da rua”. Fonte: Flickr

Usuários transitando ininterruptamente

Esse requisito está intimamente ligado ao anterior, uma vez que uma quantidade significativa de pessoas transitando e utilizando as ruas é condição necessária para que haja olhos da rua. Tanto no sentido direto quanto indiretamente.

No sentido direto porque as próprias pessoas que usam e transitam pela rua acabam exercendo uma vigilância natural. Ruas com movimentação de pessoas tendem a tornar-se mais seguras (pelo menos até um certo nível de movimentação, uma vez que ruas com um número excessivo de pessoas pode favorecer alguns tipos de furtos. Mas Jacobs não trata desse aspecto). Jacobs descreve o que ela chama de “balé das ruas”, em que vários atores, com os mais diversos propósitos, saem às ruas em horários diversificados para as mais diferentes atividades. Essas atividades interagem entre si e de alguma forma acabam complementando-se, formando uma teia de interação social e cuidados mútuos.

Espaços públicos
Ruas bem movimentadas tendem a ser mais seguras. Fonte: (LYNCH, 1960)

Indiretamente, o movimento de pessoas atua como atrator para os olhares de quem não está na rua, uma vez que as pessoas costumam gostar de olhar quem passa.  Ruas desertas dificilmente atrairão a atenção de quem está dentro das edificações, o que acaba acentuando a sensação de insegurança.

Algumas observações adicionais

As idéias de Jacobs, apesar de terem sido formuladas há meio século, ainda parecem ser válidas, no seu conjunto, para as cidades atuais. A questão da interação entre estranhos e moradores locais ainda permanece significativa (vide o problema dos condomínios fechados), e longe de uma solução satisfatória. Os olhos da rua, uma das suas principais contribuições, permancece mais válido que nunca e, no entanto, cada vez mais presenciamos situações em que as edificações viram-se de costas para o espaço público, renegando-o. Talvez o “clima” de cidade pequena esteja irremediavelmente perdido na maioria dos lugares, mas a possibilidade de interação social e de manutenção coletiva das condições de segurança parecem viáveis.

Seria interessante discutirmos, nos comentários, alguns exemplos concretos que os leitores conheçam e os quais queiram compartilhar. Será que essas ideias da Jacobs aplicam-se a todos os lugares? Há exceções? Comentem!

Referências bibliográficas

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LYNCH, Kevin. The image of the city. Cambridge: The M.I.T. Press, 1960.

NEWMAN, Oscar. Creating defensible spaces. Washington, DC: U.S. Department of Housing and Urban Development, 1996.

9 thoughts on “Segurança nas cidades: Jane Jacobs e os olhos da rua

  1. Eduardo says:

    Complemento acrescentando que, para surtir efeito a idéia de que “a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente”, além dos aspectos arquitetônicos, é necessário que o zoneamento dos bairros permitam um equilíbrio entre áreas comerciais e residenciais. Pois zonas exclusivamente comerciais ou residenciais criam “vazios” de circulação em determinados horários do dia, criando problemas de segurança. Um exemplo que vejo diariamente é o centro de Florianópolis. No entorno do Mercado Público e Praça XV de Novembro, dá medo de passar por ali fora horário comercial, afugentando turistas que gostariam de visitar estes locais.

  2. Geovani de Oliveira Tavares says:

    Abordo a temática “Os Olhos da Rua” ao estudar a insusgência de Vigias de Rua que se apresentam como alternativa de segurança em face dos vazios que se formam nos centros urbanos, mesmo nas pequenas cidades onde surgem pessoas dispostas a pagar pelos olhos de outros na busca constante de mais segurança nas ruas.

  3. Maira Oliveira Pires says:

    Olá Renato,
    Tenho investigado a temática de segurança na Comunidade do Monte Serrat para meu TCC ARQ/UFSC. A visão que os moradores tem da rua é muito interessante. É praticamente o único espaço público da localidade, é o lugar onde as crianças brincam, onde as pessoas se encontram, sempre muito diversificado e movimentado. Entretanto, para uma parte dos moradores, principalmente as mães, também é o lugar do medo, onde as crianças estão vulneráveis a diferentes tipos de violência. Para outros, principalmente jovens, os usos das ruas – desde festas locais a pequenos encontros- tem sido cada vez mais restritos devido a ação da polícia.
    Estou tratando de uma escala comunitária, que de certa forma mantém o “clima da cidade pequena”. A manutenção destas características tendo em vista lugares urbanos seguro tem se mostrado um desafio.

  4. José Carlos da Rocha says:

    A abordagem da segurança pelo fato da existeência da calçada, penso que vai além da segurança. Há todo um ir e vir que muitas vezes é interrompido pelo avanço desordenado da área privada sobre a pública sobre este espaço chamado calçada. E florianópolis apresenta a cada rua, um inúmeros exemplos destas irregulariedades. Basta observarmos com atenção, ou andarmos em volta de nossas residências, que facilmente encontramos estas situações. Independentemente da zona, seja comercial ou residencial. Além da inexistência delas na rua, a conservação também é outro fator que não é respeitado. Todos estes fatores aumentam os riscos e a imobilidade das pessoas para caminharem em suas idas e vindas, utilizando assim de veículos. Temos ainda um longo caminho de perdas e aprendizado sobre a questão da importância de uma calçada adequada e saudavel.

  5. Paulo says:

    O que mais a Jane Jacobs fala sobre o fluxo nas ruas, a hierarquia viária e o volume de tráfego? Como é visto por ela isso na cidade? 🙂

  6. Elso Moisinho says:

    Acredito que tão ou mais importante que a gentrificação do espaço urbano seria a sensação de segurança. A este tema tão bem abordado poderia unir-se as questões psicológicas e técnicas da influencia da luminotecnia.

  7. André Casati says:

    Chegamos em 2017. Este assunto ainda gera muita discussão e parece que continuará assim por bastante tempo.
    Cheguei até o site em busca das ideias de Jane Jacobs, depois que li o seguinte post em um grupo de moradores do bairro:
    – “Ouvi hoje, de um amigo que mora na Ladeira do Castro, que os moradores, cansados de tantos assaltos, resolveram ocupar a rua. Uma tem um brechó, outro faz churrasco, outro vende cerveja, e a comunidade fica na rua até tarde. Nos postes tem cartazes que comentam o movimento. Acabaram-se os assaltos. Adorei essa história verdadeira, contada por quem vive o acontecimento.”
    Mudei-me para o bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro. Como sabem, a violência na cidade tem escalado rapidamente, desde o fim dos “grandes eventos”, falência do estado, etc…
    Pensei em meu trajeto pelo bairro, cheio de casas e prédios baixos e nenhuma vida nas ruas. Pessoas com medo, trancadas dentro de casa. A rua como espaço hostil.
    Lembrei do passado no subúrbio do Rio onde, nas noites quentes de verão, as pessoas sentavam-se na porta de suas casas, para *olharem* o movimento e conversar entre si.
    Perguntei-me se eu mesmo faria isso nos dias de hoje. Acredito ser uma solução viável à violência na cidade.

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