Shopping centers e condomínios fechados: fragmentação, homogeneização e hierarquização na cidade contemporânea

Este post foi escrito por Ewerton Rosa, estudante do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, a partir de monografia realizada para a Disciplina Fundamentos Sociais da Arquitetura e Urbanismo I, ministrada pelo Professor Paulo Cesar Xavier Pereira.

 

Dentre os espaços produzidos no processo de auto-exclusão das camadas sociais mais abastadas diante da cultura do medo e da violência, nos focalizaremos no shopping center e no condomínio fechado por já estarem bastante disseminados e por já terem adquirido enorme visibilidade na cidade contemporânea. São enclaves que rejeitam a esfera pública, buscando justificativas pela cultura do medo e da violência, ou buscam recriá-la de acordo com os seus interesses privados, de forma que o espaço público tenderia a se tornar uma mera simulação. (FRUGOLI cf. ABRAHÃO, 2005, p. 129)

A intenção de reproduzir o público no privado não possui como razão apenas o temor da violência, é parte de um processo mais amplo de subordinação do espaço e do tempo às necessidades do mercado, conferindo-lhes valor de mercadoria (CARLOS, 2003, p. 85). Portanto o discurso da violência e preocupação com o bem-estar carrega consigo outros valores ligados ao consumismo, à intenção de segregação social e ao desejo de obter ou manter o prestígio na sociedade.

Auto-exclusão na produção do espaço

Esses dois elementos se relacionam e são complementares no espaço urbano, ao utilizarem formas semelhantes para atender algumas das funções primárias do cotidiano da sociedade urbana: moradia, consumo e lazer. O condomínio como moradia, local no qual se realizam os hábitos mais ligados a privacidade, ao familiar, o lar está embutido neles, por terem esse caráter fazem parte do dia-a-dia. Já o shopping foi o local eleito pela classe social que vive nos condomínios para neles realizarem suas atividades de consumo e de lazer, sendo que a segunda a princípio não é um instrumento de consumo e não necessita de um espaço pré-estabelecido para se desenrolar.


Consumidores no Shopping Cidade Jardim em São Paulo (fonte: VejaSP)

Carlos Nelson e Vogel afirmam que qualquer espaço pode se tornar de lazer, basta que haja a sua apropriação para esse fim, um local possível seria a rua, “equipamento potencial de lazer”. (SANTOS cf. ABRAHÃO, 2005, p. 104). E da mesma forma que o espaço passa a ser mercadoria, o “espaço econômico subordina a si o tempo” (LEFEBVRE, 1974, p. 114). O tempo livre passa à qualidade de bem consumível ao se vincular aos ideais de consumo, assim como, também, serviços e valores prezados pela sociedade como a privacidade e a segurança. Segundo Lefebvre o espaço produzido e as relações sociais existentes nele sob o domínio de relações de produção capitalistas são marcados por processos simultâneos de hierarquização, homogeneização e fragmentação.

As relações no espaço produzido

As formas arquitetônicas adotadas nos shoppings e condomínios mantêm características semelhantes visando a uma homogeneização, permitindo que rapidamente os espaços sejam identificados. Os conjuntos de formas presentes buscam ser chamativos, buscando ostentar materiais diferenciados e soluções incomuns em relação às demais construções ao redor. Não são para serem vistas lado a lado com as demais, mas sim para se sobreporem, da mesma forma que os seus usuários e moradores na relação urbana entre as classes sociais.

Não só diferentes, buscam ser desiguais em uma relação hierárquica, valorizando-as em relação ao restante da sociedade e em relação ao mercado, pois são mercadorias. Para Carlos, essa disposição hierárquica de lugares homogêneos impõe “ritos, gestos, modelos que se articulam, como parte integrante do processo de reprodução das relações sociais, expressando a contradição entre o público e o privado, entre uso e troca” (CARLOS, 1999, p. 72).


Shopping Bourbon em São Paulo (fonte: Revista Quem)

Esses espaços “são capazes de realizar as mais estranhas fantasias” (CALDEIRA, 2000, p. 272). Nos condomínios, para valorizar o bem que está sendo vendido comumente as formas remetem à arquitetura tradicional de outros países, sobretudo os europeus e os nomes dos conjuntos tendem a ser estrangeiros. Mais do que realizar fantasias, essa tendência reforçada a diferenciação desses locais em relação ao meio urbano no qual estão incluídos através da tendência da reprodução do espaço sem as referências que o particularizam (CARLOS, 2003, p. 88), ocorrendo simultaneamente à negação do espaço como produto histórico e à difusão de valores que tendem a valorizar os ideais fantasiosos embutidos nessas reconstruções.

A hierarquização de padrões visuais e na articulação de lugares na cidade é ao mesmo tempo um resultado e um meio para se estabelecer a hierarquização social. O sucesso da difusão dos ideais capitalistas acaba por gerar em todos, independente de classes sociais, o desejo de consumir e de acessar os lugares da cidade associados a um requinte como os condomínios e shoppings. A partir do momento que critérios de poder aquisitivo são colocados nessa relação ocorre a disposição da sociedade em grupos. Com essa dualidade, há a tendência de que as pessoas que usufruem desses espaços e as que estão fora serem vistas em dois grupos caracterizados como completamente homogêneos, reforçando a visão de que tudo e todos que estejam fora dos limites dos enclaves sejam igualmente inconvenientes e apresentem perigos.

Da mesma forma ocorre a generalização dos que possuem meios para participar desse grupo que consome. Os empreendimentos imobiliários ao partirem de um “perfil de família oficializado” (CARLOS, 1999, p. 120), homogeneízam e transpõem as particularidades. Os condomínios são vendidos associados a uma ideia de previsibilidade, de forma que o comprador poderá prever a que segmento sócio-econômico pertence os seus vizinhos e como serão os seus comportamentos, tendendo a criar um laço de semelhança e indiferenciação entre essas partes para que aumente a confiança e as expectativas do comprador em relação à aquisição. Nesse contexto a homogeneidade tem a função de deixar clara a diferença entre os que habitam essas áreas e os outros que habitam os outros espaços.

A ideia de privacidade também é recorrente, mas não somente a privacidade individual, ou seja, a desejada, por exemplo, no interior da unidade de habitação, mas também a privacidade do grupo social mais abastado em relação aos outros. É alcançada através da exclusividade e da segurança que permeia a relação dessas áreas com a cidade exterior e os grupos sociais que a compõem. Nesse âmbito, a privacidade reafirma a decisão auto-excludente da camada.


O Morumbi e a favela de Paraísópolis, São Paulo. Foto: Tuca Vieira

Esses enclaves podem ser instalados e criar novas centralidades onde o mercado julgar necessário, independente de localização. Principalmente nos casos de condomínios fechados não é levado em consideração a harmonia e o respeito às características físicas da malha urbana, muito menos a sua história. São fragmentos de terra que apresentam grande descontinuidade com o entorno. Assim como os shoppings, os condomínios são estruturados para que se obtenha uma “versão totalizante do meio urbano”, propondo um “mundo fechado” (SANTOS, 1981, p. 20-22). Ruas, praças, vegetações, áreas para consumir, áreas para o lazer, tudo que é considerado positivo na cidade é reproduzido dentro dos seus limites, enquanto os aspectos negativos permanecem fora, afastados dos que se utilizam desses espaços privados.


Condomínio Casas do Bosque – Salvador/BA

Huet defende que os espaços públicos devem ser garantidores da contigüidade das cidades ao reunir e associar aquilo que é separado e que não são apenas lugares de convívio e troca, mas também lugares nos quais se desenvolve a aprendizagem civilizadora e cultural dos habitantes. (HUET, 2001 cf. ABRAHÃO, 2005, p. 31). Lefebvre defende a rua como “o local do encontro, sem o qual não existem outros encontros possíveis” Ao confrontar a sua utilização, também é negado “o movimento, a mistura, sem os quais não há vida urbana.” (LEFEBVRE, 1999, p. 29). Ao negar-se a rua também são negados os aspectos fundamentais a vida urbana.


Fonte: Diário do Grande ABC

Caldeira aponta que os encontros entre as diferentes classes sociais além de estarem agora mais restritos por estar ocorrendo uma “implosão da vida pública”, quando ocorrem são geralmente marcados por tensões e desconfianças, pois “têm como referência o estereótipo de pessoas” (CALDEIRA, 2000, p. 301). Há a tendência de que não só todos os que estão refugiados nesses espaços sejam vistos como iguais, mas também todos os que estão fora dele também sejam também vistos dessa forma, porém em outro patamar numa hierarquização social. Tal visão abre espaço para as diferentes formas de discriminação e reforço das tensões no convívio urbano.

As conseqüências dessa tensão geram um desconforto na utilização dos espaços públicos também entre os demais, que muitas vezes são vistos com desconfiança. Câmeras se repetindo pelos muros, vigilantes instalados pelas calçadas portando equipamentos e cães que intimidam os transeuntes, além das barreiras físicas dificultando e restringindo a sua circulação afastam qualquer interesse em desfrutar desses espaços rotineiramente para passeios.

Diante da evidenciação das conseqüências, podemos atribuir a elas o processo de alteração de valores nas nossas cidades proporcionadas pela perda de cidadania e pela falta de interesse em questões urbanas (ABRAHÃO, 2005, p. 107). Com o valor de uso submetido ao de mercadoria, a sensação de responsabilidade coletiva pelos espaços públicos devido ao intenso uso dessas áreas no cotidiano desaparece, enquanto é crescente a idéia da valorização da propriedade, do individualismo e do uso de um espaço mediante um pagamento. O espaço, assim como o tempo, ao serem submetidos a lógica capitalista reforçam a noção de produtividade e quantificação deles.

O “desencontro cidadão metrópole” (CARLOS, 2003, p. 88) é conseqüência do modelo de produção do espaço que leva ao esvaziamento dos espaços públicos, limitando a percepção de identidade do cidadão, agora entre os limites do sistema de mercadorias e da sociedade de “consumo do espaço” (LEFEBVRE cf. CARLOS, 2003, p. 87), impondo transformações no uso e condições de acesso aos lugares por intermédio do mercado, alterando o sentido nas relações espaciais e sociais.

Bibliografia

ABRAHÃO, Sergio. O processo de significação do espaço público urbano como espaço público político. São Paulo: FAUUSP, 2005.

CALDEIRA, Teresa. Cidade dos muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 2000.

CARLOS, Ana. “’Novas’ contradições do espaço.” IN: DAMIANI, Luisa. O espaço do fim do século: a nova raridade. São Paulo: Contexto, 1999.

CARLOS, Ana. São Paulo: Dinâmica urbana e metropolização. Revista Território – Ano VII – nº 11, 12 e 13. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

SANTOS, Carlos. Condomínios Exclusivos, o que diria a respeito um arqueólogo? Rio de Janeiro: IBAM, 1981.

3 thoughts on “Shopping centers e condomínios fechados: fragmentação, homogeneização e hierarquização na cidade contemporânea

  1. Mirtes Moreira Silva says:

    O texto está bem escrito, claro e conciso. Muito bom, os argumentos utilizados não deixam dúvida: essa é a praga desse século- o medo e o consumismo juntos que alimentam a exclusão. Mirtes.

  2. Pedro Alasmar says:

    excelente texto.
    sou arquiteto, formado pela mesma fau, e venho com uma questão que me surgiu enquanto eu lia. a certa altura, você menciona: “Da mesma forma ocorre a generalização dos que possuem meios para participar desse grupo que consome. Os empreendimentos imobiliários ao partirem de um “perfil de família oficializado” (CARLOS, 1999, p. 120), homogeneízam e transpõem as particularidades. Os condomínios são vendidos associados a uma ideia de previsibilidade, de forma que o comprador poderá prever a que segmento sócio-econômico pertence os seus vizinhos e como serão os seus comportamentos, tendendo a criar um laço de semelhança e indiferenciação entre essas partes para que aumente a confiança e as expectativas do comprador em relação à aquisição. Nesse contexto a homogeneidade tem a função de deixar clara a diferença entre os que habitam essas áreas e os outros que habitam os outros espaços.”
    eu queria apontar uma dualidade no mínimo curiosa sobre essa constatação: apesar de haver uma pré-seleção da vizinhança, as pessoas cada vez mais se fecham para os próximos; é comum o habitante do condomínio que não conhece seus vizinhos e por vezes nem sabe o nome da pessoa que mora ao lado. é contraditória essa vontade de conhecer a vizinhança e a atitude de não compartilhamento da vida social, não?

  3. Joao says:

    Excelente crítica! Shoppings e condomínios os dois maiores agentes urbanos segregadores.

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