John Peponis: Espaço, Cultura e Desenho Urbano

Neste artigo, já considerado um clássico no campo da Sintaxe Espacial, John Peponis (com tradução de Frederico de Holanda) faz uma crítica às “teorias” urbanísticas pós-modernas e mostra que, apesar dessas abordagens criticarem pesadamente os princípios modernistas, pouco fizeram para avançar nosso conhecimento sobre a cidade e sua dinâmica sócio-espacial:

Asseguro […] que as muitas posições intelectuais adotadas nos últimos 15 anos, sob a vaga bandeira da “crítica ao modernismo”, não melhoraram efetivamente nosso conhecimento arquitetônico, e algumas vezes distorceram completamente as questões. (Peponis, 1992, p. 78)

Iniciando por Jacobs e Alexander, em suas defesas de densidades altas (que atualmente parecem óbvias), Peponis argumenta que os aspectos formais da densidade não foram explorados e suas “necessidades configurativas” não foram devidamente tratadas nem foram traduzidas para princípios arquitetônicos. (Aqui podemos discordar de Peponis, ao menos no que diz respeito a Jacobs. Ele assume que ela reconheceu a necessidade de quadras curtas, mas alega que isso foi tudo; ao contrário, acreditamos que Jacobs foi além, defendendo a necessidade de proximidade das edificações com a rua, dos usos comerciais nos térreos, dos olhos da rua, e assim por diante, que claramente são princípios arquitetônicos. Outra prova disso é a denominação de “Densidades Jacobs” dada por Gordon e Ikeda [2011] ao tipo de ocupação densa mas com características morfológicas específicas como as citadas acima).

A ênfase nos aspectos locais acaba negligenciando aspectos globais, que levam em consideração o sistema de relações entre os espaços.

Sua atenção se volta então aos Kriers e seus esquemas geométricos de praças. Segundo Peponis, tais esquemas apresentam sofrível sofisticação metodológica. “É também irritante por sugerir que a qualidade da praça é função apenas de sua forma local, não tendo nada a ver com a relação espacial da praça com o seu contexto urbano maior.” (Peponis, 1992, p. 79)

A “Collage City” de Rowe e Ketter (um texto que chegou a ser popular na década de 90, mas que parece ter caído no esquecimento) também é alvo de Peponis. Segundo ele, “Uma colagem de afirmações introvertidas de identidade não constituiria uma paisagem democrática, mais que um labirinto” (Peponis, 1992, p. 80) e, portanto, caso não haja uma estrutura global que incentive e promova o convívio entre os diferentes através do espaço, ideais democráticos e práticas de manifestação e negociação são prejudicados.


Krier – Fonte: Xili.

Em síntese, essas manifestações apresentaram três grandes problemas: concentraram-se nas formas e aspectos superficiais, ao invés de buscar encontrar princípios subjacentes; focaram na configuração local em detrimento dos aspectos globais; e limitaram-se a especulações, sem aprofundar-se em estudos empíricos que lhes dessem sustentação.

O espaço importa?

Para refletir sobre essa questão (que também parece ter perdido sua força desde a década de 90, especialmente com o acirramento dos conflitos urbanos em todo o mundo), Peponis menciona Venturi e Koolhaas, com seus “Aprendendo com Las Vegas” e “Nova Iorque delirante”, respectivamente, bem como Jameson e seu conceito de “não-lugares”. Apesar dessas referências defenderam a relativa desimportância do espaço em favor da imagem, do simbólico e do padronizado, Peponis lembra, seguindo Mike Davis, que os hotéis citados por Jameson cumprem a função de “manter afastada uma população negra pobre” dos arredores e, portanto, “A arquitetura do aparente não-lugar é assim apresentada como uma estratégia de controle profundamente social e bem tradicional” (Peponis, 1992, p. 80).


Las Vegas – Sean MacEntee

Efeitos geradores da estrutura espacial

A configuração dos espaços abertos cria padrões de probabilidade de movimento e de encontros.

Nesse ponto, Peponis volta-se para a Teoria da Sintaxe Espacial, recuperando alguns de seus conceitos-chave. Mais especificamente, ele destaca a importância do entendimento do sistema urbano como um sistema de relações entre suas partes e cita o conceito de integração como uma propriedade fundamental. O núcleo integrador, constituído por uma porção das linhas mais integradas, permite caracterizar sistemas urbanos pela forma como essa propriedade da malha se distribui. Além disso, a integração tem se mostrado capaz de correlacionar-se com a quantidade de pessoas caminhando pelos espaços, mesmo sendo uma medida puramente configuracional (isto é, não leva em consideração os usos do solo, densidades, topografia, etc.): “As pessoas escolhem livremente sobre percursos independentes. Sem outra coordenação, a estrutura do espaço parece gerar padrões de difusão, modulação e convergência, que assimilam os percursos individuais a uma estrutura global.” (Peponis, 1992, p. 82).

Isso tem implicações sociais claras: outros fenômenos estão associados a esses padrões de movimento, sendo o primeiro e mais direto deles a distribuição dos usos do solo. Pesquisas mostram, por exemplo, que a densidade de lojas comerciais está correlacionada à medida de integração (Aguiar, 1991 apud Peponis, 1992). Mas, para além disso, outro efeito importante da configuração é o padrão de co-presença no espaço urbano. Se a integração consegue “captar” padrões de movimento, então também consegue captar locais em que há maior ou menor número de pessoas (caminhando). Isso não quer dizer, “é claro, que as pessoas interagem, partilham ou trocam experiências entre si, ou mesmo que se notam mutuamente. A configuração determina apenas o notar potencial de outros, como o pano de fundo para uma sociedade ativa.“(Peponis, 1992, p.  82) (É preciso, entretanto, ter cuidado com o termo “determina” conforme usado por Peponis, uma vez que ele pode dar a entender que haveria uma relação direta [no sentido de “determinística”] entre a configuração dos espaços abertos e a efetiva co-presença nesses espaços. Acreditamos que não é esse o caso: no nosso entendimento, a integração consegue captar com sucesso uma das forças atuando no sentido de formação dessa co-presença [possivelmente uma das mais importantes, mas não a única]. Ver, a esse respeito, Holanda [2002, p. 110 e seguintes] e Netto et al [2012]).

Esse campo de encontros prováveis (efetivados ou não), sugerido pela configuração, é chamado de “comunidade virtual” (Hillier, 1989 apud Peponis, 1992).

Espaço como recurso cultural

Sendo assim, os conceitos de “lógica espacial do movimento” e comunidade virtual podem ajudar a entender, de forma mais adequada do que as teorias pós-modernas, o papel do espaço como recurso cultural. Apesar de o espaço não determinar as diferenças e identidades sociais, ele

[…]tem um papel muito mais importante a jogar, relacionado à decisão de como identidades diferenciadas coexistem, expõem-se a comparações mútuas e formam parte da consciência cívica cotidiana. […] O papel do espaço é, portanto, limitado, mas não culturalmente negligenciável.” (Peponis, 1992, p. 82)

Nossa experiência espacial envolve o encontro com o outro, mas não apenas isso. “Diz respeito também à exploração do inusitado e ao contato com outros modos de vida, ainda que não sua participação neles” (Peponis, 1992, p. 82). (Basta pensar nos guetos formados por enclaves espaciais aos quais correspondem classes sociais específicas, e o quão difícil é superar esse limites nas práxis cotidianas. Como serão no futuro as crianças que hoje convivem apenas em seus condomínios fechados e shopping-centers? Quão conscientes serão elas a respeito de realidades diferentes das suas? Como desenvolver respeito e tolerância mútuos sem a convivência – ou ao menos o notar-se mútuo – com valores e realidades diferentes da sua? Sobre isso, é interessante ainda consultar o trabalho de Berger e Luckman – The social construction of reality – e seu conceito de “manutenção do universo” [universe-maintenance], bem como a importância da constante presença daqueles aspectos da existência que confirmam e reforçam uma determinada visão de mundo).

Por fim, Peponis nota que a democracia, apesar de não estar diretamente ligada a formas espaciais específicas, requer que o espaço como recurso cultural seja acessível a todos, não apenas como um direito hipotético e abstrato, mas como experiência concreta.

Referências

AGUIAR, Douglas. Grid configuration and land use: a syntactic study. Tese de Doutorado não publicada, University of London, 1991.

GORDON, P.; IKEDA, S. Does density matter? In: D. Andersson; A. Andersson; C. Mellander (Orgs.); Handbook of Creative Cities, 2011. Edward Elgar Pub.

JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

PEPONIS, J. Espaço, cultura e desenho urbano no modernismo tardio e além dele. Revista AU, n. 41, p. 78–83, 1992.

HOLANDA, F. R. B. DE. O espaço de exceção. Brasília, DF: Editora UnB, 2002.

NETTO, V. DE M.; SABOYA, R.; VARGAS, J. C.; et al. The convergence of patterns in the city: (Isolating) the effects of architectural morphology on movement and activity. Proceedings of the 8th Space Syntax Symposium.  p.1–32, 2012. Santiago: Universidad Católica Chile.

HILLIER, B. The architecture of the urban object. Ekistics, v. 56, n. 334/33, p. 5–21, 1989.

1 thought on “John Peponis: Espaço, Cultura e Desenho Urbano

  1. Alessandra R. Castro says:

    Prezado Professor Renato, gostaria de parabenizá-lo pelo excelente texto. Achei de grande sensibilidade. Especialmente, a parte final em que há questões sobre como será o comportamento futuro das crianças que crescem enclausuradas em condomínios e shoppings centers sem experienciar a diversidade (“Quão conscientes serão elas a respeito de realidades diferentes das suas?”). Super bacana tal preocupação, deixando claro uma das dimensões da sustentabilidade de desenhos urbanos, que é a apropriação do espaço por todos de forma democrática.

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