Construindo argumentos

Nos estudos urbanos, frequentemente precisamos construir argumentos para convencer outras pessoas sobre algumas de nossas ideias. Duas situações são típicas: a primeira envolve as discussões e deliberações em processos (participativos ou não) de planejamento. Nelas, é comum tentarmos defender a importância de algumas medidas, explorar quais seriam as consequências de determinadas ações e porque acreditamos nisso, e assim por diante. Quem já participou das etapas propositivas de um plano ou projeto urbanístico sabe a importância de argumentos sólidos e bem construídos. O segundo tipo de situação é a redação de trabalhos técnicos, sejam científicos ou não (trabalhos acadêmicos, pareceres, relatórios, artigos científicos, dissertações, teses, etc.). Neles, a importância dos argumentos é crucial e clara: as ideias sendo transmitidas precisam estar devidamente estruturadas e embasadas, se quiserem ter alguma credibilidade.

Por isso, veremos neste post como construir um bom argumento, decompondo-o em suas partes e discutindo-as uma a uma. Toda a discussão sobre argumentos é baseada na (belíssima) obra de Booth, Colomb e Williams (2008).

As partes de um argumento

Um bom argumento é composto de seis partes:

  • Uma afirmação, que é a parte central de um argumento e expressa uma ideia que pode ser verdadeira ou falsa;
  • A razão ou as razões que fazem com que devamos acreditar na afirmação;
  • As evidências existentes para se acreditar que as razões são válidas;
  • As ressalvas, que reconhecem os problemas e limites da afirmação e/ou as condições sob as quais ela deve ser considerada válida;
  • As respostas às ressalvas, que envolvem outras afirmações, razões e evidências complementares;
  • Os princípios que explicam porque as razões e as evidências são relevantes para a afirmação.

A estrutura central de um argumento é composta por uma afirmação, que é justificada por uma razão, que, por sua vez, é sustentada por evidências (veja a figura abaixo).


Fonte: traduzido de Booth et al. (2008, p. 112).

Entretanto, normalmente são necessários outros componentes para que um argumento seja realmente sólido e capaz de inspirar confiança e convencer outras pessoas:


Fonte: traduzido de Booth et al. (2008, p. 113).

Vejamos cada uma dessas partes em mais detalhes.

A afirmação

A afirmação, como dito acima, é a parte central de um argumento. Ela representa a ideia principal sendo defendida, aquilo de que queremos convencer o outro. Veja, por exemplo, uma das afirmações mais famosas de Jane  Jacobs:

O distrito, e sem dúvida o maior número possível de segmentos que o compõem, deve atender a mais de uma função principal; de preferência, a mais de duas. (Jacobs, 2000, p. 167)

(parênteses aqui: o correto não seria “devem”? Mas divago.)

Afirmações precisam ser específicas e significativas, isto é, terem nível adequado de definição e serem relevantes para o leitor.

Essa afirmação defende a necessidade de que os usos do solo principais sejam combinados para gerar ambientes urbanos com vitalidade. As razões pelas quais Jacobs quer nos fazer acreditar que uma coisa está relacionada à outra serão tratadas na seção seguinte. Por enquanto, basta entendermos o que é uma afirmação, e as duas condições necessárias para que elas sejam adequadamente elaboradas: especificidade e significância.

A especificidade é necessária para que a afirmação não seja vaga ou ambígua. Ela confere maior definição ao argumento e, assim, esclarece melhor o que está sendo afirmado e permite uma melhor escolha das razões e evidências a serem utilizadas para apoiá-la. Compare, por exemplo, a afirmação de Jacobs citada acima com a seguinte:

A cidade deve ter diversidade de usos.

Fica claro que a redação original de Jacobs é muito mais específica e, portanto, define melhor o que está sendo efetivamente afirmado. Não se trata da cidade como um todo, nem de qualquer parte dela, mas do distrito e seus segmentos. Não é qualquer diversidade de usos, mas uma combinação de dois ou mais usos principais.

O segundo critério é o da significância, isto é, de que a afirmação possua relevância a ponto de valer a pena ser dita ou escrita. Segundo Booth et al (2008, p. 124):

Depois da precisão de uma afirmação, os leitores examinam mais cuidadosamente sua significância, uma qualidade que eles medem pelo quanto ela pede que eles mudem o que pensam.

Em outras palavras, a significância está relacionada a quão nova é a afirmação, e a quanto suas repercussões são importantes, caso ela seja verdadeira. Isso, obviamente, depende do contexto em que ela é feita, e também para quem ela é feita. Comunidades específicas possuem suas próprias regras para determinar o que é importante ou não, e conhecê-las é essencial para avaliar a significância de uma afirmação.

Razões

As razões, juntamente com as evidências, devem responder à pergunta “Por que eu devo acreditar nessa afirmação?”. Normalmente elas envolvem algum tipo de relação de causa e efeito que conectaria os conceitos envolvidos na afirmação (mesmo que algum deles tenha ficado apenas implícito).

Veja, por exemplo, esse conjunto afirmação – razão:

Eficiência significa, em primeiro lugar, que as pessoas que utilizam as ruas em horários diferentes devem utilizar exatamente as mesmas ruas.” (Jacobs, 2000, p. 179) [Afirmação]

“Se seus trajetos forem diferentes ou separados uns dos outros, não haverá na verdade mistura alguma. [razão 1] Quanto à economia urbana, então, a sustentação mútua das diferenças seria fictícia ou algo que se deva encarar simplesmente como uma abstração de diferentes usos contíguos, sem significação alguma, a não ser num mapa. [razão 2]” (Jacobs, 2000, p. 179)

Argumentos complexos normalmente necessitam de mais de uma razão, que podem vir antes ou depois da afirmação, e podem, por sua vez, estar apoiadas em mais de um conjunto de evidências.

Evidências

Evidências são aqueles elementos que podem ser vistos, medidos, sentidos ou percebidos de alguma maneira pelos leitores e sobre os quais, preferencialmente, haja pouca dúvida. São o que, usualmente, chamamos de “fatos”, se possível que tenham sido coletados de maneira sistemática, rigorosa e cuidadosa.

As evidências precisam ser:

  • Corretas: de boa qualidade e sem erros;
  • Precisas: específicas o suficiente para minimizar as dúvidas e ambiguidades quanto ao quê elas estão efetivamente suportando;
  • Suficientes: para não deixar desguarnecidos pontos importantes da afirmação e das razões, bem como para não baseá-las em apenas uma fonte de informação ou caso isolado;
  • Representativas: de modo a permitir inferir que elas se referem a todos ou à maioria dos casos cobertos na afirmação;
  • De fontes qualificadas: a autoridade ou reputação de quem gerou as evidências também influencia na sua confiabilidade.

Podemos dizer que as evidências são o ponto fraco dos argumentos de Jacobs. Na maioria dos casos, ela utilizou evidências derivadas de sua experiência pessoal, coletada assistematicamente e, por isso, sem representatividade ou suficiência para generalização a contextos mais amplos. Isso não quer dizer, obviamente, que seus argumentos não estejam corretos, apenas que as evidências oferecidas à época possuíam essas falhas.

Ressalvas e respostas

Antecipar-se às possíveis objeções ao argumento e responder a elas demonstra rigor crítico e reconhecimento da importância de considerar todos os aspectos relevantes.

Os leitores não julgam um argumento apenas pela força das evidências, mas também pelo quanto eles conseguem aferir sobre a confiabilidade de quem os está defendendo. Assim, se a pessoa que está apresentando os argumentos também demonstra esforço em reconhecer suas limitações, explorar outras possibilidades e oferecer razões pelas quais ele deve ser considerado verdadeiro mesmo à luz desses fatores, sua confiabilidade aumenta perante o leitor.

Veja o seguinte exemplo:

No entanto, espero que o leitor não entenda minhas observações como um guia do que ocorre nas cidades, nas pequenas cidades ou nos subúrbios que se mantêm periféricos.  Cidades, subúrbios e até mesmo cidadezinhas são organismos totalmente diferentes das metrópoles. Já estamos numa enrascada enorme por tentar entender as cidades grandes com base no comportamento e no suposto funcionamento das cidades menores. Se tentarmos entender as cidades menores com base nas metrópoles, a confusão será ainda maior. (Jacobs, 2000, p. 15)

Nele, Jacobs estabelece um recorte claro para o qual ela defende que suas ideias sejam válidas (as cidades grandes). Afirmações excessivamente ambiciosas, sem as devidas razões e evidências que deem conta de todo o seu espectro, acabam despertando desconfiança.

Mais alguns exemplos:

Será que as minhas sugestões sobre outros usos baseados em atividades de lazer parecem frívolas e dispendiosas? [ressalva]

Veja, então, os custos previstos dos projetos elaborados pela Associação do Centro e da Baixa Manhattan e pela prefeitura para criar ainda mais locais de trabalho,  conjuntos habitacionais e estacionamentos e vias expressas que permitam aos moradores sair do distrito nos fins de semana. Essas coisas devem custar, estimam os planejadores, um
bilhão de dólares em dinheiro público e privado! [resposta] (Jacobs, 2001, p. 176)

Além de identificar os pontos fracos ou possíveis objeções aos argumentos, outra boa prática é tentar imaginar quais pontos de vistas alternativos poderiam ser levantados pelos leitores, e antecipar-se a eles:

Mas alguém poderia objetar impensadamente que se trata de duas concepções estéticas contrárias, uma questão de gosto, e gosto não se discute. [ressalva] Mas é mais do que gosto. Uma dessas concepções – as “cortes de honra” separadas – contradiz as necessidades funcionais e econômicas das cidades e de seus usos específicos também. A outra concepção – a cidade mesclada, com marcos arquitetônicos intimamente rodeados pela matriz cotidiana – harmoniza-se com a atividade econômica e com outras atividades funcionais das cidades.[resposta] (Jacobs, 2001, p. 191)

Por fim, é importante também preparar-se para possíveis (ou prováveis) objeções baseadas em evidências que podem contradizer seus argumentos, isto é, fatos que não se encaixam na narrativa que seu argumento constrói. Essas evidências podem ser casos isolados ou específicos, isto é, exceções à regra, ou podem ser sinais verdadeiros de que seus argumentos não são válidos ou precisam ser melhor delimitados. De qualquer forma, antecipar-se aos problemas que elas podem causar torna mais forte a construção do seu argumento.

Booth et al (2008, p. 143) sintetizam as principais fontes de objeções aos argumentos nos seguintes pontos:

  • Acusações plausíveis sobre pontos fracos no argumento;
  • Linhas de pensamento alternativas ao que seu argumento defende;
  • Conclusões diferentes das suas que os leitores desejariam que fossem verdadeiras;
  • Evidências alternativas que não se encaixam no argumento;
  • Contraexemplos importantes que precisam ser explicados.

Princípios

Muitas vezes não fica claro, para o leitor, porque as razões apresentadas são relevantes para a afirmação, ou seja, porque as razões sugeridas devem levá-lo a acreditar na afirmação. Em outras palavras, não fica clara qual é a conexão lógica entre uma coisa e outra. Por isso, é preciso:

  • oferecer uma conexão entre uma classe geral de fenômenos e uma classe geral de consequências desses fenômenos;
  • mostrar que seu argumento trata de um representante específico dessa classe geral, e que sua consequência específica seria também uma representante da classe geral de consequências.

Considere, por exemplo, o seguinte princípio geral:

Áreas urbanas bem sucedidas e com vitalidade precisam de uma rede intrincada e complexa de  usos principais combinados que se alimentam mutuamente e garantem diversidade.

Um caso específico desse princípio geral pode ser:

Levar diversos equipamentos de cultura de Nova Iorque para uma área própria e monofuncional, como queria a prefeitura, resultaria em um ambiente urbano empobrecido e desvitalizado.

O princípio geral trata dos fenômenos “áreas urbanas bem sucedidas e com vitalidade” e dos “usos principais combinados”, enquanto que o caso específico fala de uma área urbana específica em Nova Iorque que, supostamente, ficaria desvitalizada porque abrigaria apenas um tipo de uso principal e, por isso, não se beneficiaria das interações entre diferentes tipos de usos.

A necessidade de explicitar os princípios que conectam os elementos do argumento também depende do campo no qual o texto está sendo escrito e o perfil dos leitores: em alguns casos, esses princípios provavelmente são conhecidos por todos, e mencioná-los poderia ser até estranho e passar a impressão de ingenuidade ou inexperiência. Em outras situações, quando estamos escrevendo para um público leigo, por exemplo, mesmo princípios básicos podem precisar ser indicados.


Como vimos, construir um argumento não é tão simples como pode parecer à primeira vista. Para cada afirmação, uma série de outros elementos precisam ser construídos e oferecidos ao leitor para que o argumento consiga se sustentar. Esperamos, assim, que os aspectos tratados aqui sejam úteis não apenas para a construção de argumentos mais sólidos, mas também como auxílio no reconhecimento dos problemas contidos em argumentos defendidos por outras pessoas, nesses tempos de polarização extrema, discursos rasos e diálogos suprimidos.

Referências

Booth, W. C. (2008). The craft of research (3rd ed). Chicago: University of Chicago Press.

Jacobs, J. (2000). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes.