No final da década de 80 e início da década de 90 surgiu um enfoque que, até hoje, vem exercendo grande influência na forma como o planejamento urbano é feito ou, ao menos, recomendado: o planejamento estratégico.
Prova disso é a própria resolução 34 do Conselho das Cidades, que diz no seu art. 1:
Art. 1º O Plano Diretor deve prever, no mínimo:
…
III- os objetivos, temas prioritários e estratégias para o desenvolvimento da cidade e para a reorganização territorial do município, considerando sua adequação aos espaços territoriais adjacentes; (grifo nosso)
O planejamento estratégico representou uma transposição dos conceitos do planejamento de empresas para o planejamento urbano (KAUFMAN; JACOBS, 1987), e vem sendo utilizado em várias cidades ao redor do mundo e inclusive no Brasil (ver, por exemplo, VAINER, 2000). Um caso significativo é o de Barcelona, por ocasião das Olimpíadas em 1992, conduzido e liderado por Jordi Borja.
Foto: ILESH
Grande parte da sua justificativa teórica baseia-se na crítica às limitações do planejamento racional / abrangente, e no reconhecimento de que as mudanças por que passam as cidades estão cada vez mais aceleradas. O planejamento estratégico se diferencia do planejamento racional-abrangente por uma ênfase maior em:
a) ações; b) consideração dos “stakeholders”, entendidos como todos aqueles indivíduos, grupos ou organizações que têm algum interesse e/ou que podem de alguma maneira influenciar no processo de planejamento; c) atenção às ameaças e oportunidades externas, bem como aos pontos fortes e fracos internos; e d) atenção aos competidores existentes ou potenciais (BRYSON; ROERING, 2004).
Com efeito, é no planejamento estratégico que se incorpora explicitamente a noção de que é necessário envolver todos os atores mais importantes para a implementação posterior das estratégias. Até então, as teorias sobre o planejamento urbano tratavam os decisores de forma implícita, como se o próprio planejador tivesse a prerrogativa sobre a decisão final. Além disso, o planejamento estratégico dá atenção também à análise das forças e tendências que estão fora do domínio do município, como é o caso das condicionantes macroeconômicas, por exemplo.
Algumas das principais características do planejamento estratégico podem ser sintetizadas da seguinte maneira:
- Ênfase na competitividade entre cidades – estas não são vistas como isoladas de um contexto mais amplo, e sim como pólos de prestação de serviços e de geração de renda que competem entre si para atrair investimentos, empregos, etc. Nesse ponto entra também o marketing das cidades.
- Incorporação da análise do contexto externo – como será explicado mais adiante.
- Foco nos pontos fortes e nos pontos fracos – Não apenas os problemas (pontos fracos) devem ser detectados, mas também os pontos fortes da cidade, aqueles nos quais ela se sobressai em relação às suas “concorrentes”.
- Orientação à ação e aos resultados – ao contrário do planejamento normativo tradicional, que estabelece regulamentos e índices e espera que a cidade se desenvolva respeitando-os até alcançar um estado futuro desejado (caráter normativo), o planejamento estratégico se concentra em ações a serem adotadas e nos resultados concretos alcançados a curto, médio e longo prazos. Por isso, há uma revalorização dos projetos urbanos, a exemplo de Barcelona.
- Participação dos atores envolvidos nos processos urbanos – todas aquelas pessoas que serão diretamente atingidas pelos resultados do processo de planejamento urbano devem participar ativamente da confecção do plano estratégico.
- Relação com o planejamento sistêmico – Lacaze (1993) argumenta que o planejamento estratégico representa a transposição da noção de sistemas para o planejamento urbano. Isso significa que todos os aspectos da cidade estão relacionados entre si e que, portanto, a atuação sobre qualquer um deles acaba afetando os demais. Isso, por sua vez, contribui para justificar o ponto seguinte.
- Ênfase na atuação sobre pontos-chave – a ênfase das intervenções é dada àqueles aspectos considerados estruturais, ou seja, capazes de influenciar o sistema como um todo de maneira mais contundente. Portanto, a atuação do planejamento estratégico não se dá sobre todos os pontos importantes, mas apenas sobre aqueles que têm a capacidade de atuar como catalisadores de mudanças importantes, chamados também de fatores críticos (KAUFMAN; JACOBS, 1987; LACAZE, 1993; GÜELL, 1997).
Processo e etapas
Bryson (2004) sugere as seguintes etapas (ou, segundo o próprio autor, “ocasiões para o diálogo e decisão”) para o planejamento estratégico:
- Iniciar e pactuar um processo de planejamento estratégico
- Identificar os requisitos legais
- Esclarecer a missão e os valores
- Avaliar os ambientes interno e externo
- Identificar as questões estratégicas
- Formular as estratégias para responder às questões
- Revisar e adotar as estratégias ou o plano estratégico
- Definir a visão de futuro
- Desenvolver um processo de implementação do plano estratégico
- Reavaliar as estratégias e o processo de planejamento estratégico
1. Iniciar e pactuar um processo de planejamento estratégico: nesta etapa deve-se buscar a negociação de um acordo entre os principais decisores sobre a necessidade de um plano estratégico e sobre as etapas gerais a serem cumpridas, como forma de obter comprometimento com o processo. É nessa etapa também que deve ser feita uma análise dos stakeholders, entendidos como “uma pessoa, grupo ou organização que possa demandar atenção, recursos ou resultados de uma organização (ou outra entidade), ou que é de alguma maneira afetada por suas ações.” (BRYSON, 2004, p. 35).
2. Identificar os requisitos legais: aqui devem ser listados e analisados todos os requisitos aos quais o Município deve obedecer, tais como condicionantes, restrições, expectativas, objetivos, etc.
3. Esclarecer a missão e os valores: a missão é o objetivo máximo de uma organização, entendido, entretanto, como um meio para se alcançar um valor maior. Os valores são aquelas características ou princípios considerados essenciais para que a organização cumpra sua missão.
4. Avaliar os ambientes interno e externo: a análise externa busca avaliar as ameaças e oportunidades que se apresentam para a cidade, dentre as variáveis que estão fora do domínio do planejador. Nesse sentido, ameaças podem ser entendidas como uma condicionante desfavorável imposta por um acontecimento do entorno, enquanto que oportunidade pode ser definida como o inverso, ou seja, como uma ocasião para se alcançar uma vantagem competitiva (uma possibilidade de conseguir recursos financeiros através de um edital, por exemplo).
A análise interna envolve a avaliação dos pontos fortes e fracos do Município ou da organização. Essa avaliação, entretanto, para ter sentido, precisa estar integrada à análise externa, visto que os pontos fortes e fracos de uma cidade adquirem real significado quando comparados aos das suas competidoras. Assim, por exemplo, um ponto forte pode ser neutralizado pela existência do mesmo ponto forte em outra cidade ou, por outro lado, pode acontecer o inverso: a importância de um ponto fraco pode ser amenizada pela existência do mesmo ponto fraco nas suas concorrentes (GÜELL, 1997).
5 . Identificar as questões estratégicas: este pode ser considerado como o ponto crítico do processo, uma vez que as 4 primeiras etapas têm como função preparar os decisores para esta etapa, que envolve a identificação das questões ou desafios fundamentais a serem enfrentados para que a organização possa cumprir sua missão. Segundo Bryson (2004), isso só é possível com um conhecimento profundo sobre o objeto do planejamento, e esse conhecimento é construído durante as 4 etapas iniciais.
A principal função desta etapa é concentrar a atenção, e conseqüentemente os esforços, naqueles itens realmente importantes para o Município ou para a organização. Dessa forma, evita-se o desperdício de recursos (humanos, financeiros, etc.) em ações que tendem a não apresentar os melhores resultados.
6. Formular as estratégias para responder às questões: esta etapa trata de desenvolver as estratégias consideradas capazes de responder às questões estratégicas identificadas na etapa anterior. Bryson (2004, p. 46) adota uma definição bastante ampla de estratégia: “Uma estratégia pode ser definida como um padrão de objetivos, políticas, programas, ações, decisões ou alocação de recursos que definem o que uma organização é, o que ela faz, e porque ela o faz”.
Güell (1997), por sua vez, define estratégia como cursos de ação cujos objetivos são incentivar os pontos fortes, superar os pontos fracos, explorar oportunidades e neutralizar as ameaças, sendo compostas por:
- objetivos estratégicos – declarações conceituais e genéricas sobre as condições desejadas;
- metas estratégicas – declarações que definem e quantificam os objetivos a serem alcançados;
- projetos estratégicos – ações necessárias para dar resposta adequada às metas estratégicas.
7. Revisar e adotar as estratégias ou o plano estratégico: nesta etapa o plano estratégico deve ser aprovado oficialmente pelas instâncias competentes antes de poder ser implementado. No caso dos municípios brasileiros, essa aprovação oficial é feita pela Câmara de Vereadores, que também tem o poder de propor alterações e ajustes ao projeto de lei do plano diretor.
8. Definir a visão de futuro: corresponde à construção de uma descrição de como o Município deverá ser depois que tiver implementado as estratégias com sucesso. Sua principal função é comunicar o que se espera dos atores e motivá-los através de uma visão inspiradora e clara sobre o futuro desejado. Bryson (2004) nota que no planejamento estratégico de comunidades a tendência é que esta etapa aconteça no início do processo.
9. Desenvolver um processo de implementação do plano estratégico: aqui devem ser desenvolvidos plano detalhados de ação que possibilitem a implementação das estratégias definidas anteriormente. Esses planos devem especificar as pessoas ou atores responsáveis por cada ação, os objetivos específicos e as metas que demonstrem se estes estão sendo alcançados, o cronograma de ações, os recursos destinados, etc.
10. Reavaliar as estratégias e o processo de planejamento estratégico: depois de algum tempo de implementação das estratégias, deve ser feita uma avaliação dos resultados alcançados com vistas a subsidiar ajustes ou mesmo outros processos de planejamento estratégico. Güell (1997) acrescenta que é importante que as estratégias adotadas sejam divulgadas para toda a população, de forma a envolver a população na sua implementação e no monitoramento dos resultados obtidos.
Críticas ao planejamento estratégico
Diversas críticas têm sido feitas ao planejamento estratégico, principalmente com relação a algumas premissas sobre o conteúdo das estratégias e à visão de cidade como um “produto” a ser vendido. Além disso, fortes críticas têm sido feitas com relação à “participação” dos atores, que muitas vezes tem ficado restrita àqueles setores mais ligados ao capital econômico (VAINER, 1999). Essas observações são importantes na medida em que alguns dos princípios do planejamento estratégico influenciam a forma como os planos diretores são elaborados atualmente no Brasil, exigindo, portanto, uma atitude crítica frente aos seus postulados e à forma de exercê-los na prática do planejamento.
Carlos Vainer (1999) destaca três aspectos condenáveis do planejamento estratégico.
O primeiro deles diz respeito ao marketing de cidades. Se a intenção é vender, surge a questão: vender para quem? A prática mostra que normalmente a cidade é “vendida” para os grandes investidores do capital estrangeiro. Isso quer dizer que os aspectos a serem valorizados na cidade não são aqueles importantes para a população em geral, mas sim aqueles que agradam e esse grupo específico.
Por isso, aspectos como infra-estrutura tecnológica e de comunicações, hotéis de luxo, mão-de-obra qualificada e aeroportos internacionais passam a liderar a lista de prioridades dos planos estratégicos.
Com relação à ambiência urbana, por outro lado, o marketing acabou gerando uma banalização dos projetos urbanos, vistos como instrumentos para embelezar a cidade e atrair o investidor interessado em uma cidade agradável para morar. Com isso, abre-se mão de uma visão integrada dos problemas urbanos, gerando um conjunto de intervenções fragmentadas que desperdiçam seu potencial de estruturar o espaço e atuar positivamente na dinâmica do sistema urbano. Essa prática, aliás, vai radicalmente contra a visão sistêmica da cidade defendida pelo próprio planejamento estratégico, conforme vimos acima.
A intenção de “vender” a cidade fica bem clara até mesmo na linguagem utilizada nos ensaios teóricos. Güell (1997, p. 133), por exemplo, diz que depois que um empresário escolhe uma cidade ele pode ou não recomendá-la para outras pessoas, e acrescenta: “por essa razão, o papel do vendedor do lugar não termina com a compra, e sim continua com o que se conhece como período pós-venda” (grifos nossos).
Em segundo lugar, Vainer critica a analogia entre cidade e empresa adotada pelo planejamento estratégico. Nessa abordagem os princípios mais importantes são “produtividade, competitividade e a subordinação dos fins à lógica do mercado” (VAINER, 1999, p. 8).
Assim, ver a cidade como empresa significa, essencialmente, concebê-la e instaurá-la como agente econômico que atua no contexto de um mercado e que encontra neste mercado a regra e o modelo do planejamento e execução de suas ações. (VAINER, 1999, p. 8).
Por último, a necessidade de consenso. Segundo Vainer, ele reduz os conflitos inerentes à complexidade da vida social urbana a níveis inaceitáveis, em nome de uma unanimidade necessária para se alcançar o desenvolvimento, baseado, como já foi dito, numa política de subserviência aos interesses do capital.
Com isso, o aspecto político do planejamento é negligenciado, visto que os princípios e os interesses estão definidos a priori. A participação dos atores, defendida pelo planejamento estratégico, acaba sendo feita basicamente por aqueles que detêm o poder econômico.
Conclusões
Tudo isso significa então que o planejamento estrátégico é uma arma diabólica criada pelo capital e que, portanto, temos que correr dela como o diabo foge da cruz?
Não é tão simples. Do meu ponto de vista, o planejamento estratégico tem muito a contribuir com a nossa prática, desde que feito dentro de certos limites e princípios. Mas isso fica para um próximo post.
Referências biliográficas
BRYSON, John. Strategic planning for public and nonprofit organizations: a guide to strengthening and sustaining organizational achievement. SanFrancisco: Jossey-Bass, 2004.
BRYSON, John; ROERING, William. Applying private-sector strategic planning in the public sector. In: STEIN, Jay. Classic readings in urban planning. Chicago: Planners Press, 2004. p. 202 – 220. (Artigo publicado originalmente em 1987).
GÜELL, José M. Fernandez. Planificación estratégica de ciudades. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1997.
KAUFMAN, Jerome; JACOBS, Harvey. A public planning perspective on strategic planning. Journal of the American Planning Association, v. 53, p. 23 -33, 1987.
LACAZE, Jean-Paul. Os métodos do urbanismo. Campinas: Papirus, 1993.
VAINER, Carlos. Os liberais também fazem planejamento urbano? In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105 – 119.
VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: VIII ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 1999 Porto Alegre. Anais eletrônicos… Porto Alegre: PROPUR – UFRGS, 1999.
Gostaria de receber detalhamento de como fazer um planejamento estrategico de minha cidade
Bom Dia
Tem lido suas públicações e as considero muito didáticas e significativas, gostaria de se saber se o sr. tem alguma informação sobre as influências liberal e intervencionais do planejamento urbano, digo de modo bem especifico.
Olá!
Um livro que trata disso, ainda que brevemente, é:
LEVY, J. M. Contemporary urban planning. Upper Saddle River, N.J.: Pearson Education, 2013.