Bill Hillier e a centralidade como um processo

Bill Hillier, principal autor da Teoria da Sintaxe Espacial (TSE), possui alguns trabalhos com reflexões interessantes e importantes sobre as centralidades urbanas. Segundo ele, as centralidades possuem um lado funcional (usos e atividades concentrados) e outro espacial (características da localização), e baseiam-se em dois princípios básicos: a lógica do movimento natural e o princípio da economia de movimento.

Movimento natural é a proporção do movimento encontrado nas ruas e espaços públicos que é determinada apenas pela configuração da malha viária, ou seja, peloo modo com as vias estão conectadas entre si. Algumas vias realizam conexões importantes entre partes da cidade e/ou estão nos menores caminhos entre outros pares de vias e, por isso, possuem papel importante na canalização do movimento (principalmente de pedestres, mas também de veículos).

Já a Economia de movimento refere-se à relação que se estabelece entre a configuração, o movimento e o uso do solo:

A ‘economia de movimento’ […] propôs que a organização progressiva do espaço nas cidades primeiro gera padrões de movimento, que então influenciam as escolhas de localização dos usos do solo, e estes, por sua vez, geram efeitos multiplicadores no movimento com realimentação nos usos do solo e na configuração das vias, à medida que estas se adaptam a um desenvolvimento mais intenso. (Hillier, 1999, p. 108 – tradução nossa)

Portanto, a economia de movimento diz respeito a um círculo (que pode ser vicioso ou virtuoso) conectando a configuração da malha, o movimento e os usos do solo, que se infuenciam mutuamente ao longo do tempo.

As centralidades otimizam a acessibilidade tanto ao nível da cidade como um todo quanto na escala local, de vizinhança.

No caso das centralidades urbanas, o que acontece é que os usos que a compõem acabam se concentrando em alguns pontos-chave da cidade. Isso acontece por dois motivos básicos: primeiro, porque eles são muito menos numerosos que, por exemplo, usos residenciais, então seria difícil que eles estivessem totalmente espalhados pelo sistema urbano e próximos a todas as residências. Segundo, porque possuem requisitos locacionais mais específicos, necessitando muitas vezes estar nos locais de maior movimento e próximos a outros usos similares e/ou complementares (veja Usos do solo: uma introdução à localização dos usos comerciais).

Do ponto de vista da configuração das vias, portanto, e considerando a economia de movimento, as centralidades urbanas surgem para proporcionar facilidade de acesso aos usos que ali se estabelecem. Na escala da cidade como um todo (ou escala global, na terminologia da TSE), essa minimização das distâncias é alcançada por uma estrutura radial, que otimiza o acesso do centro às bordas, e vice-versa. Essa estrutura se materializa por meio de vias de movimento compostas por longas linhas com ângulos bem abertos entre elas, ou seja, com boa continuidade angular e poucas mudanças bruscas de direção, como vemos na imagem abaixo.

Mapa de integração da cidade de York, mostrando a centralidade principal e as vias mais acessíveis conectando-a às bordas da cidade (Hillier, 1999, p. 117).

Já na escala local, essa otimização do acesso aos usos presentes nas centralidades é alcançado pela intensificação da malha, ou seja, pela criação de pequenas e numerosas quadras que otimizam os percursos de quem está na área, mesmo que não tenha necessariamente chegado lá a pé. Uma vez estando aí, é fácil ir a qualquer lugar dessa grelha de ruas com relativamente pouco esforço. Além disso, dentro de um mesmo raio de caminhada é possível acessar muitos metros de ruas, ou seja, é possível maximizar o alcance de pessoas e atividades mantendo o mesmo nível de esforço. A imagem abaixo mostra esse fenômeno: na situação da esquerda, que possui uma malha intensificada e altamente acessível na escala local, um raio de caminhada de 500m permitiria acessar aproximadamente 16.600m de ruas. Já na situação da direita esse valor seria de apenas 9.000m, quase a metade, porque a rede de vias é muito mais desconectada e permite menores possibilidades de movimento dentro do mesmo raio de caminhada.

Duas situações urbanas contrastantes em termos das possibilidades de movimento proporcionadas na escala local.

Em outras palavras, áreas de centralidade são altamente acessíveis (comparadas às demais áreas) tanto para grandes raios de abrangência na escala da cidade quanto para as residências do entorno e para os movimentos dentro dela.

Quando essa área começa a se formar e assumir esse papel de centralidade, ela sofre pressões para ser cada vez mais acessível, por meio da criação de novas vias que subdividem quadras existentes, dividindo-as em quadras menores.

Além disso, essas áreas tendem a ser convexas e compactas, porque isso também contribui para a otimização dos percursos (por exemplo, comparando com uma estrutura linear). O caráter compacto é dado pela relação entre a área e o perímetro, que aumenta quando nos aproximamos de uma forma quadrada ou circular. Isso faz com que as distâncias internas sejam menores do que em uma situação com a mesma área mas perímetro maior.

A junção dessas duas características acaba resultando em áreas de centralidades principais que possuem o formato de uma “batata com espinhos”: uma área convexa e compacta, formada pelos processos locais, mais um conjunto de ramificações que unem a centralidade às demais partes do tecido, e acabam abrigando usos mais diversos nas partes mais próximas da área convexa.

Centralidades que não são as principais formam-se nessas vias que conectam o centro às demais partes do tecido, mas não em qualquer lugar: justamente naqueles que possuem alguma integração (ou intensificação da grelha) local. Entretanto, elas continuam com um caráter mais linear, ao contrário da centralidade principal.

A imagem abaixo mostra essas duas lógicas de concentração dos usos não residenciais em Joinville, SC: No centro principal, a aglomeração é mais compacta; nas áreas mais periféricas, fica bem clara a lógica linear dessas concentrações.

Distribuição de usos não residenciais em Joinville, SC. Fonte: Editado pelo autor com base em dados do Google Earth e da Prefeitura Municipal de Joinville.

Em resumo

Pensando em termos temporais, temos:

  • Início de uma centralidade na parte de maior acessibilidade do assentamento, normalmente na intersecção das duas vias mais importantes, com instalação de usos não residenciais importantes para a comunidade (comércios, instituições, etc.)
  • Amplificação do movimento no local, com a sobreposição dos efeitos da malha viária e dos usos que se estabeleceram lá.
  • Processo de intensificação da malha nesse local, com a criação de quadras curtas ao redor desse nó, para atender às pressões exercidas pela maior movimentação de pessoas.
  • Posteriormente ou até mesmo paralelamente, há o surgimento de centralidades secundárias nas vias mais integradas fora desse centro principal, seguindo mais ou menos os mesmos princípios, só que com menor intensidade.

Referência

HILLIER, B. Centrality as a process: accounting for attraction inequalities in deformed grids. Urban Design International, v. 4, n. 3 & 4, p. 107–127, 1999.