Em visita a Barcelona, tive a oportunidade de visitar alguns pátios internos das manzanas utilizados como áreas públicas ou semi-públicas. Ao contrário do que eu imaginava, encontrar esse tipo de espaço não foi muito fácil. Por algum motivo eu tinha a impressão de que uma porcentagem significativa dos quarteirões possuíssem seus miolos permeáveis, mas chegando lá vi que não era bem assim. Decidi pesquisar um pouco melhor a questão, e o resultado virou este post.
O plano de Cerdá e os miolos de quadra
Em seu plano para a expansão de Barcelona, realizado em 1859 (chamado Eixample), Cerdá previa que todas as quadras possuíssem pátios internos públicos, sendo que a grande maioria delas teriam apenas dois dos quatro lados ocupados por edificação; algumas previam três lados, como pode ser visto na imagem abaixo (clique para ampliar).
Plano original de Cerdá para o Eixample. (Fonte: Wikimedia Commons)
Entretanto, desde o início da implementação do plano de expansão, o jogo de forças políticas acabou resultando na ocupação quase que total dos quatro lados das quadras e de todos os seus miolos. Se olharmos uma imagem aérea atual vemos claramente que esse é o padrão dominante.
A recuperação dos miolos de quadra como espaços de lazer
Diante desse quadro, a municipalidade de Barcelona deu-se conta de que deveria fazer alguma coisa para modificar essa situação e, assim, passou a atuar para viabilizar a reconversão das áreas internas às quadras para espaços abertos de lazer. Em 1985 o pátio de les Aigües foi adquirido pelo Poder Público e, em 1987, foi completada a transformação do miolo de quadra em área pública, que preservou a bela Torre de Água ali existente. As imagens abaixo mostram a situação anterior, com os espaços interiores privatizados, e a situação após a renovação. É possível notar que ainda existe uma parcela significativa ocupada pelas unidades privadas, mas a parte mais central foi liberada como espaço público.
Pátio interno da Torre de les Aigües – antes da renovação (fonte: Pazos, 2014a).
Pátio interno da Torre de les Aigües – após a renovação (fonte: aqui).
Durante essa iniciativa, e animada pelos resultados já obtidos, a municipalidade aprovou a “Ordenanza de Rehabilitación y Mejora del Eixample“, plano que, além de proteger o patrimônio arquitetônico, passou a incentivar a liberação dos pátios internos. Dessa forma, as substituições de edificações e as ampliações deveriam deixar liberado o pátio central a partir de uma vez e meia a largura da edificação (o que explica a relação entre áreas privadas e a área pública na imagem acima). Para viabilizar as modificações pretendidas, são permitidos aumentos na intensidade de ocupação do solo. Além disso, como um dos objetivos é que as fachadas antigas sejam mantidas, em grande parte dos casos não há acesso direto da rua, como será visto mais adiante, sendo o acesso feito por meio de uma das edificações.
Em 1996 foi criada a ProEixample, uma empresa pública encarregada de promover o Eixample como espaço de atividades econômicas e organizar as ações para a recuperação dos pátios, incluindo a aquisição dos terrenos e a elaboração dos projetos.
Em 2000, o Plano General Metropolitano (PGM) é modificado para incluir um novo tipo de zona residencial dentro do conjunto do Eixample, a “zona de densificación urbana 13E” (Pazos, 2014b). A partir disso, fica instituída no plano geral a obrigatoriedade da manutenção do pátio livre, o que deu maior força à iniciativa e a tornou parte consolidada da política urbana de Barcelona. Ao todo, foram recuperados e/ou criados 46 pátios, como pode ser visto na imagem abaixo. Cabe ressaltar a sua distribuição pelo tecido, o que contribui para que todas as áreas do Eixample tenham acesso facilitado a alguma dessas áreas públicas.
Distribuição dos pátios e áreas ajardinadas recuperados desde 1987 no Eixample (Fonte: Pazos, 2014b).
Estrutura e funcionamento dos novos pátios internos
Segundo Teresa Pazos, que desenvolveu seu trabalho de mestrado sobre os pátios internos públicos em Barcelona, este são “recinto fechados, de uso público mas limitado ao horário diurno, com acesso a partir da rua por passagens por baixo da edificação ou aberturas estreiras. […] Seu tamanho é inferior a 40% da quadra, com uma superfície que varia entre 400 e 4.000 m2.” (Pazos, 2014b, p. 154). Ainda segundo essa autora, apesar de não possuírem um padrão uniforme, a maior parte deles possui jardins, áreas para crianças e quadras esportivas. Os principais usuários são crianças menores de 12 anos e os adultos que as acompanham.
A estrutura geral também varia. Algumas quadras, especialmente aquelas cujos miolos foram recuperados sem haver grande modificação nas edificações que compõem o perímetro, não possuem ligação direta com a rua. Esse acesso é feito através de usos públicos localizados em uma das edificações, como por exemplo uma biblioteca. Dessa forma é feito o controle de acesso, que é interrompido à noite.
As quadras mais recentes, que foram resultado de novas construções sobre, por exemplo, antigas fábricas, possuem funcionamento diferente. Foi uma dessas que eu visitei no Eixample. A imagem abaixo mostra a área infantil, com espaços para sentar ao redor, e os novos edifício ao fundo.
Pátio interno no Eixample. Foto: Renato Saboya
Pátio interno no Eixample. Foto: Renato Saboya
Ao contrário das outras quadras, esta possui ligação direta com a rua, feita através de três espaços deixados entre as edificações, e controlados por portões que são fechados à noite. Placas de sinalização indicam o período de funcionamento e algumas regras de utilização.
Pátio interno no Eixample. Foto: Renato Saboya
Pátio interno no Eixample. Foto: Renato Saboya
Por se tratar de edificações novas, essa quadra permitiu que os comércios situados em uma das faces se voltassem para o espaço interno. Nesse caso, entretanto, o que poderia ser um recurso super interessante acabou não sendo aproveitado, pois o uso instalado foi o de uma revendendora de automóveis, que não possui nenhuma relação com as atividades desenvolvidas internamente e não parece ter interesse em aproveitar-se desse espaço.
Pátio interno no Eixample. Foto: Renato Saboya
Pátio interno no Eixample. Foto: Renato Saboya
Tive a oportunidade de visitar também outros pátios internos semelhantes, porém situados na Vila Olímpica. A imagem abaixo mostra esses pátios, que foram pensados para se encadear através de seus acessos, que estão alinhados uns aos outros.
Quadras com pátio interno na Vila Olímpica de Barcelona. Fonte: Google Earth.
A estrutura é muito semelhante àquela mostrada acima, com a diferença que é uma área mais residencial e os usos comerciais que se estabelecem no térreo são de menor porte, tais como fotocopiadoras e papelarias. A relação desses usos com o pátio interno parece mais apropriada, apesar de não parecer haver alta interação entre eles. Os acessos à rua funcionam de forma semelhante à quadra do Eixample, mas ao contrário do que foi possível verificar lá, os edifícios residenciais possuem acessos também pelos pátios internos, possivelmente aumentando a integração entre edifício e espaço aberto.
Pátio interno na Vila Olímpica. Foto: Renato Saboya
Pátio interno na Vila Olímpica. Foto: Renato Saboya
Pátio interno na Vila Olímpica. Foto: Renato Saboya
Veja abaixo mais algumas imagens desses pátios internos (todas as fotos de autoria de Renato Saboya).
Referências
PAZOS ORTEGA, T. La reconquista urbana del espacio de proximidad: los patios interiores en el Eixample de Barcelona. QRU: Quaderns de Recerca en Urbanisme, v. 4, p. 152–161, 2014b.
Me pergunto como é hoje a ocupação desses espaços? O quanto as pessoas usam, se são seguros… Eles realmente funcionam dentro do objetivo que tem?
A resposta a sua pergunta está respondida neste artigo mesmo.