Zoneamento e planos diretores v.2.0 – parte 1

A versão original desse post foi publicada em novembro de 2007, no primeiro ano do Urbanidades e, portanto, já fez 10 anos (!?!). Por isso, e sendo um dos mais acessados e comentados aqui do blog, achei que já era hora de fazer uma versão 2.0, revisada, ampliada e melhorada. O texto antigo ainda é válido, mas relendo o post não consigo mais me conformar com a (baixa) qualidade das imagens (em minha defesa, naquela época havia uma preocupação maior com o tamanho das imagens porque a internet era mais lenta e isso poderia tornar a página excessivamente pesada). Além disso, vejo que há vários aspectos que mereceriam ser melhor trabalhados, e outros que poderiam ser incluídos para que o tratamento do assunto ficasse mais completo. Como essa revisão tornou o texto longo demais para um post só, ele será dividido em quatro partes. No final do post estão os links para as outras três partes.

O que é o zoneamento e para que serve?

O zoneamento divide a cidade em áreas sobre as quais incidem diretrizes diferenciadas para o uso e a ocupação do solo.

O zoneamento é um instrumento amplamente utilizado nos planos diretores, através do qual a cidade é dividida em áreas sobre as quais incidem diretrizes (normalmente em termos de limites e restrições) diferenciadas para o uso e a ocupação do solo. Essa definição já indica algo importante: zoneamento não é a mesma coisa que planos diretores, apesar de esses conceitos confundirem muita gente. Plano Diretor é um documento mais amplo, que incorpora (ou deveria incorporar) objetivos, princípios, estratégias e instrumentos – dos quais o zoneamento é apenas um deles, ainda que possa ser o principal – para conduzir o desenvolvimento urbano na direção de objetivos definidos coletivamente.

Alguns de seus principais objetivos são:

  • Controle do crescimento urbano, mantendo-o em níveis compatíveis com a infraestrutura instalada e a capacidade de suporte do meio ambiente;
  • Proteção de áreas inadequadas à ocupação urbana, especialmente aquelas compostas por áreas frágeis do ponto de vista ambiental, impróprias para urbanização e/ou que ofereçam riscos à ocupação;
  • Minimização dos conflitos entre usos e atividades, impedindo a justaposição de usos incompatíveis entre si e determinando possibilidades de instalação de atividades dependendo da vocação de cada área;
  • Controle do tráfego através da alocação de maior ou menor potencial de adensamento em determinadas partes da cidade, bem como da restrição de pólos geradores de tráfego em pontos problemáticos quanto ao sistema de mobilidade;
  • Manutenção do “caráter” do bairro;
  • Proteção aos valores das propriedades;
  • Restrição a atividades que atraiam moradores de outros bairros.

Quanto a estes três últimos objetivos, apesar de, geralmente, essas intenções não ficarem perfeitamente explícitas , há um consenso entre vários autores de que elas estão entre as razões iniciais mais importantes para a efetiva adoção do zoneamento (Juergnemeyer; Robert, 2003; Anderson, 1995; Fischell, 2004), conforme veremos a seguir.

Atualmente, o zoneamento é um instrumento amplamente utilizado ao redor do mundo, sendo utilizado em praticamente todas as grandes cidades (Houston é uma exceção).


Zoneamento de Los Angeles. Fonte: aqui.

Um pouco da história do zoneamento

O zoneamento como conhecemos atualmente foi utilizado pela primeira vez na Alemanha, por volta de 1870 (Fischell, 2004), mas foi nos Estados Unidos que ele ganhou força, a partir do início do século XX (Leung, 2002), com a instituição do zoneamento de Nova Iorque, em 1916. Apesar de outras cidades já contarem com legislações semelhantes ao zoneamento, todas as aplicavam em algumas regiões específicas, e nunca na cidade como um todo. Foi em Nova Iorque que isso aconteceu pela primeira vez, em grande parte pela preocupação com a altura dos novos edifícios, possibilitados pelas novas tecnologias construtivas, e seus impactos sobre as ruas e as edificações vizinhas.

a) Equitable building, um dos primeiros a motivar seriamente as preocupações com a altura dos edifícios e seus impactos na rua e nos vizinhos. b) Afastamentos progressivos previstos no zoneamento de Nova Iorque (1961).

Apesar disso, Fischell (2004) argumenta que a introdução e disseminação do automóvel, que possibilitaram a ocupação em subúrbios, também teve papel decisivo. Segundo ele, foi nos subúrbios que as demandas por sossego, iluminação e ventilação tornaram-se mais óbvias e passaram a tomar força junto à sociedade, uma vez que as zonas mais centrais eram “naturalmente” mais adensadas, movimentadas e ruidosas.

Durante as primeiras décadas, a principal função dos zoneamentos era evitar a perda do “caráter” dos bairros, bem como evitar atrair usos comerciais e pessoas de fora.

Por esse motivo, as primeiras experiências com o zoneamento nos Estados Unidos buscavam evitar que alguns tipos de usos do solo fossem instalados em determinadas áreas da cidade. Não por acaso, esses usos eram, na maioria das vezes, aqueles relacionados às classes mais baixas (tais como vilas, cortiços, habitação popular, comércios de pequeno porte, etc.). Fischell (2004) cita uma publicação de 1923 que declara expressamente que uma das vantagens do zoneamento é a proteção ao preço das residências, principalmente aquelas localizadas nos subúrbios. Por conta disso, o caráter excludente do zoneamento é alvo de muitas críticas, como veremos mais adiante. A imagem abaixo mostra uma defesa da restrição de usos comerciais em bairros residenciais de Nova Iorque. A publicação é um estudo para o rezoneamento daquela cidade (Harrisson et al., 1950).

Fonte: Harrison et al. (1950).

Sendo assim, os zoneamentos consolidaram-se como instrumentos para separar os usos da cidade em regiões mais ou menos homogêneas. Essa característica ainda hoje está intimamente associada ao conceito de zoneamento, ainda que hoje ele tenha assumido muitas outras formas mais flexíveis quanto aos usos do solo. O zoneamento de Winnipeg, visto abaixo, exemplifica essa orientação às zonas de usos exclusivos, como é possível ver na legenda do mapa.

Fonte: aqui.

O julgamento de Euclid vs Ambler marcou a consolidação legal do zoneamento como instrumento de controle do uso e ocupação do solo.

Outro momento crucial na história do zoneamento foi o julgamento de uma ação em Euclid, uma vila no subúrbio de Cleveland, nos Estados Unidos, ainda na década de 1920. Em 1922 seu zoneamento foi implementado, e uma empresa, a Ambler Realty Company, sentiu-se prejudicada porque um terreno de sua propriedade foi impedido por ele de receber usos industriais (na verdade, uma parte do terreno). Essa área ficava em um dos vetores de expansão da área industrial de Cleveland, mas já em outra jurisdição. Em sua ação, a Ambler Realty alegou que não caberia às pequenas cidades (ou vilas, como eram chamadas) do entorno determinarem como essa expansão deveria acontecer, pois isso poderia causar um sufocamento e uma interferência indevida nas cidades maiores (Fluck, 2007). Além disso, argumentou que o próprio instrumento do zoneamento não deveria ser permitido, por representar um abuso de poder por parte da administração pública sobre as propriedades privadas e, naquele caso específico, por diminuir o valor da propriedade sem a devida compensação. Atacando ainda a essência do instrumento, a empresa defendeu a noção de que não seria possível conhecer todos os aspectos relevantes sobre o crescimento e a dinâmica de uma cidade necessários para estabelecer a distribuição de usos e as demais restrições ao desenvolvimento urbano (Fluck, 2007).

Apesar de ganhar na primeira instância, o caso chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos, que acabou dando ganho de causa a Euclid. Na decisão, os juízes dispensaram os argumentos da empresa, afirmando que estudos técnicos já existentes à época (como os feitos para Nova Iorque, citados acima) mostraram que é possível estudar e entender a cidade. A defesa conseguiu convencer também através do argumento de que (mais uma vez) o zoneamento iria, na verdade, aumentar o valor das propriedades, e que esse tipo de instrumento não era necessariamente mais complicado do que diversos outros dispositivos legais já existentes, tais como os códigos de obras e de proteção contra incêndios.

De qualquer forma, o fato é que essa decisão da Suprema Corte representou uma pedra fundamental na consolidação do zoneamento como instrumento de planejamento – ou, mais especificamente, de controle do uso e da ocupação do solo – não só nos EUA mas também no mundo. Sua lógica de funcionamento foi considerada legítima e constitucional em um dos países que mais prezava pela propriedade privada e pelos direitos dos proprietários e, por conta disso, até hoje esse tipo de zoneamento tradicional é conhecido como zoneamento euclidiano.

Zoneamento de Euclid, 1922. Fonte: aqui.

Detalhe da legenda do zoneamento de Euclid, 1922. Unifamiliar, duas famílias, apartamentos, lojas de varejo e atacado, comércio, indústrias; 2,5 pavimentos, 4 pavimentos, 24 metros. Fonte: aqui.

No próximo post, vamos ver como o zoneamento funciona e quais são algumas de suas caracteríticas desejáveis.

Referências

ANDERSON, L. Guidelines for preparing urban plans. Chicago: American Planning Association, 1995.

FISCHEL, W. A. An Economic History of Zoning and a Cure for its Exclusionary Effects. Urban Studies, v. 41, n. 2, p. 317–340, 2004.

FLUCK, T. A. Euclid v. Ambler: A retrospective. Journal of the American Planning Association, v. 52, n. 3, p. 326–337, 30 set. 1986.

HARRISON; BALLARD; ALLEN. Plan for Rezoning the City of New York. New York: City Planning Comission, 1950.

JUERGENSMEYER, Julian Conrad; ROBERT, Thomas. Land use planning and development regulation law. St. Paul: Thomson West, 2003.

1 thought on “Zoneamento e planos diretores v.2.0 – parte 1

  1. Francisco N Leal says:

    Que interessante esta história sobre a vila de Euclid, podemos ver que a iniciativa privada desde o começo já via o zoneamento como um entrave para os seus interesses. É o desafio de conciliar o interesse coletivo com o privado…
    Ótimo post Renato, parabéns!

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