Ann Spirn e o ciclo das águas na cidade – Parte 1

O livro “O jardim de granito”, de Ann Spirn, é um dos mais importantes no que diz respeito à consideração dos aspectos naturais no planejamento e projeto de cidades. Neste texto, dividido em duas parte, vemos: 1) o que ela tem a nos dizer sobre o ciclo das águas na cidade; e 2) alguns exemplos de intervenções bem sucedidas e diretrizes para futuros projetos que busquem melhorar a relação das cidades com as águas e prevenir catástrofes como enchentes e enxurradas.

Várzeas são as áreas mais planas ao redor do leito dos rios que servem como “escape” para suas águas nos períodos de chuva.

O conceito-chave para analisar esses fenômenos é a várza. Várzeas são as áreas mais planas ao redor do leito dos rios que servem como “escape” para suas águas nos períodos de chuva. Na maior parte das vezes, o próprio leito do rio é suficiente para abrigar o aumento da vazão devido ao volume de chuvas, mas, algumas vezes, as águas acabam transbordando para as margens e inundando as várzeas.

Limites da área de inundação com e sem ocupação. Fonte: São Paulo (2012).

Quando a várzea está livre, o leito do rio muda com o tempo, conforme as águas sedimentam um lado e erodem o outro. Há uma dinâmica próxima entre o rio, a várzea, o relevo e a intensidade e frequência das chuvas. Por isso, o tamanho e a forma da várzea estão diretamente ligados ao regime de chuvas e inundações. Isso é especialmente relevante quando o rio acontece em um relevo plano, pois ele tende a ser sinuoso e inundar regularmente. Veja, por exemplo, o traçado original (ou um dos traçados originais, já que ele podia se modificar com as inundações e a dinâmica das chuvas e dos fluxos) do Rio Tietê, em comparação com o traçado atual, retificado artificialmente:

Comparação entre o traçado atual e o traçado antigo dos rios Tietê e Tamanduateí. Fonte: São Paulo (2012).

A urbanização impõe duas modificações importantes nesse ciclo natural de escoamento das águas e inundações. Primeiro, as várzeas perdem capacidade de armazenar a água extra quando necessário, uma vez que a ocupação urbana as comprime, deixando-as mais estreitas. Além disso, há também depósito de sedimentos que são carregados pelas chuvas através da infraestrutura de drenagem nas ruas, o que deixa as várzeas mais rasas do que eram originalmente. Essas duas alterações na largura e profundidade das várzeas diminuem seu volume total, diminuindo sua capacidade de armazenar água quando necessário.

Segundo, elas sofrem com o aumento do volume e da velocidade da água que é direcionada aos rios. A impermeabilização do solo urbano, que acontece por meio da pavimentação das ruas, das construções e da pavimentação das áreas abertas intralotes, entre outros, faz com que as águas da chuva escorram de maneira muito mais rápida e resulte em maiores volumes sendo despejados diretamente nos rios em um menor período de tempo, quando comparado ao que aconteceria caso a água tivesse que escorrer pelas superfícies porosas e permeáveis das áreas vegetadas.

Apenas uma fração da chuva que cai nas matas rurais e nos campos corre rapidamente para os córregos, rios e lagos. As folhas interceptam uma parte da chuva, e o solo absorve a maior parte da água remanescente. Da água que é absorvida pelo solo, uma parte é retirada pelas plantas, retornando posteriormente à atmosfera através da evapotranspiração, outra parte se evapora diretamente da superfície do solo, enquanto a água remanescente se move lentamente através do solo como lençol freático. (Spirn, 1995, p. 161)

Esquema demonstrando a diferença na absorção de água em um cenário menos ocupado e em uma situação urbanizada. Fonte: São Paulo (2012).

A ocupação e impermeabilização da várzea, bem como o aumento da área drenada, acarretam em desequilíbrios e enchentes.

Para piorar o quadro, a tendência é de aumento da área impermeável ao longo do tempo, tanto pela impermeabilização de áreas que ainda se mantinham permeáveis na mancha urbanizada, como pela progressiva ocupação de novas áreas com ocupação urbana, aumentando a área total que “contribui” para o volume de água despejado nos rios. Com o aumento dessa área de captação, aumenta também o volume de água total que a área urbanizada impede de ser lentamente absorvida pelo solo e que, em vez disso, passa a escorrer para e pelas ruas e a ser captada pelas bocas de lobo, para serem despejadas distante dali.

Esquema animado do aumento da área de drenagem e diminuição da área e voluma da várzea com a urbanização. Elaboração própria.

A impermeabilização impede também, ou ao menos diminui, a absorção da água da chuva pelo solo e a consequente recarga do lençol freático. As várzeas são especialmente porosas e, por isso, possuem grande capacidade de recarregar os aquíferos subterrâneos. Isso tem duas consequências: primeiro, diminui a água presente no solo e disponível para as plantas; segundo, faz com que o lençol não contribua para os rios quando não há chuvas, também com consequências para a irrigação das plantas.

Na próxima parte, mostraremos algumas recomendações feitas pela autora para que esses aspectos sejam integrados adequadamente ao planejamento urbano e ambiental, juntamente com exemplos de intervenções bem sucedidas.

Referências

SÃO PAULO (2012) Plano Diretor de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais de São Paulo – PMAP-SP.

SPIRN, A. W. O jardim de granito. São Paulo: EdUSP, 1995.