Parcelamento do solo – Parte 2


No post anterior vimos as modalidades de parcelamento do solo e alguns conceitos similares. Neste, discutiremos alguns aspectos urbanísticos dos parcelamentos, abordando suas implicações para as cidades, as diretrizes contidas na lei federal e algumas considerações sobre a sua regulamentação nos planos diretores visando a constituição de tecidos urbanos mais interessantes e adequados.

Requisitos urbanísticos exigidos por lei federal

A Lei 6766/79 estabelece diversos requisitos urbanísticos a serem observados pelos loteamentos e desmembramentos. Entretanto, como comentado no post anterior, é omissa quanto aos condomínios fechados e loteamentos com acesso controlado.

Art. 4o. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: I – as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situem. [(Redação dada pela Lei nº 9.785, de 1999)](https://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis/L9785.htm#art3)_ II – os lotes terão área mínima de 125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes; III – ao longo das faixas de domínio público das rodovias, a reserva de faixa não edificável de, no mínimo, 15 (quinze) metros de cada lado poderá ser reduzida por lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento do planejamento territorial, até o limite mínimo de 5 (cinco) metros de cada lado. [(Redação dada pela Lei nº 13.913, de 2019)](https://www.planalto.gov.br/ccivil03/Ato2019-2022/2019/Lei/L13913.htm#art2) III-A – ao longo da faixa de domínio das ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não edificável de, no mínimo, 15 (quinze) metros de cada lado; (Redação dada Lei nº 14.285, de 2021) III-B – ao longo das águas correntes e dormentes, as áreas de faixas não edificáveis deverão respeitar a lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento de planejamento territorial e que definir e regulamentar a largura das faixas marginais de cursos d´água naturais em área urbana consolidada, nos termos da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, com obrigatoriedade de reserva de uma faixa não edificável para cada trecho de margem, indicada em diagnóstico socioambiental elaborado pelo Município; (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021) IV – as vias de loteamento deverão articular-se com as vias adjacentes oficiais, existentes ou projetadas, e harmonizar-se com a topografia local.

Além disso, a Lei 6766/79 estabelece também alguns requisitos quanto à infraestrutura mínima necessária:

§ 5o A infra-estrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação. (Lei 6766/79, Art. 2º; Redação dada pela Lei nº 11.445, de 2007).

Vamos comentar melhor essas diretrizes instituídas pela lei federal na sequência, começando pelos locais nos quais é permitido parcelar e, portanto, crescer horizontalmente.

Crescimento e expansão: onde parcelar?

Uma das decisões mais fundamentais no planejamento urbano diz respeito a onde a cidade pode ou não pode crescer. Considerando que uma das principais maneiras (apesar de não ser a única) de a cidade crescer é horizontalmente por meio da ampliação da mancha urbanizada, essa forma de crescimento está diretamente relacionada à questão de onde permitir o parcelamento e onde não permitir. Onde permitir adensamento e ocupação urbana? Onde o meio natural e/ou atividades não urbanas devem permanecer resguardadas?

A Lei Federal 6766/79 estabelece que só é possível parcelar “em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal.” (Art. 3º) Entretanto, essa diretriz é genérica e, portanto, cabe ao município estudar, para o seu contexto, onde essas áreas devem estar localizadas.

As áreas em que é permitido parcelar determinam boa parte da direção de crescimento da cidade e o quão compacto ou disperso esse crescimento será.

Aqui, é relevante a classificação proposta por Liu et al. (2010), segundo a qual cada nova inserção na mancha urbana pode ser do tipo “preenchimento interno” (infill), “expansão horizontal contínua” (edge) ou “expansão horizontal descontínua” (leapfrog). O preenchimento interno ocupa vazios urbanos em áreas já consolidadas; a expansão horizontal contínua ocupa áreas adjacentes à mancha urbanizada, estendendo-a; e a expansão horizontal descontínua realiza “saltos” na urbanização, ocupando áreas desconectadas da mancha urbana já existente.

Figura 1. Tipos de expansão urbana de acordo com a relação com a mancha urbana pré-existente. Fonte: adaptado de Liu et al (2010).

Ocupações do tipo descontínuo (leapfrog) trazem muitos prejuízos para as cidades: – áreas residenciais de baixíssima densidade, esvaziadas e distantes de comércios e serviços essenciais.

  • áreas residenciais de baixíssima densidade, esvaziadas e distantes de comércios e serviços essenciais.
  • distâncias excessivas a serem percorridas diariamente, muito maiores do que precisariam ser caso a mancha urbana permanecesse compacta. Todas as áreas vazias entre esses parcelamentos e a porção mais consolidada precisariam ser percorridas diariamente sem atender ninguém no caminho, desperdiçando tempo e combustível.
  • maiores custos de infraestrutura de água, esgoto e energia elétrica, bem como de coleta de lixo. A tubulação e o cabeamento necessários para atender a esses parcelamentos isolados ficarão ociosos em boa parte do seu comprimento, sem atender ninguém.
  • dificuldades e maiores custos de implantação de transporte coletivo, que dependem de uma boa relação entre os custos e a quantidade de pessoas atendidas. Como resultado, essas áreas acabam ficando sem acesso ao transporte coletivo ou, na melhor das hipóteses, com poucas linhas e horários.

Por isso, é importante que o plano diretor determine com cuidado as áreas que podem ou não ser urbanizadas. Isso inclui considerações tanto qualitativas quanto quantitativas:

  • Evitar áreas sensíveis do ponto de vista ambiental, sujeitas a inundações, de alta declividade, próximas a rios e outros cursos d’água, com vegetação a ser preservada, etc.
  • Impedir o parcelamento de áreas distantes da mancha urbana já consolidada, o que aumentaria a fragmentação da área urbana e intensificaria os problemas já existentes causados por uma ocupação dispersa.
  • Ainda que a área parcelável esteja junto à mancha urbana, é importante dimensionar seu tamanho de acordo com as reais tendências e demandas de crescimento. Caso contrário, se essas áreas forem excessivamente grandes, é provável que o padrão resultante também leve à dispersão da mancha urbana, uma vez que apenas uma pequena porção da área (provavelmente junto aos limites mais distantes) será parcelada.
  • Áreas intermediárias, pelas quais já passa infraestrutura para atender localidades mais distantes, devem ser priorizadas no plano diretor. Isso permitiria aproveitar melhor a infraestrutura já existente, diminuir custos para a coletividade e diminuir a dispersão urbana.

As dificuldades na regulamentação das áreas parceláveis

Apesar de haver certo consenso entre os planejadores sobre a importância de restringir as áreas parceláveis e de expansão urbana para evitar os problemas advindos da dispersão urbana, na prática é muito difícil criar consensos entre os diferentes agentes urbanos sobre essa diretriz.

Isso acontece porque áreas parceláveis são mais caras do que áreas não parceláveis. Portanto, há bastante interesse em ampliar ao máximo as zonas parceláveis, não apenas entre os construtores e incorporadores, mas também – ou talvez principalmente – entre os proprietários de terras. Pela minha experiência em discussões sobre o plano diretor, zoneamento e perímetro urbano, a visão geral das pessoas é de que esse aumento do preço da terra traria mais “crescimento econômico” ao município, a despeito dos inúmeros prejuízos. É provável que essa crença esteja ligada à ideologia dominante, segundo a qual qualquer tipo de obra ou megaprojeto urbanos se justificaria por uma suposta “geração de emprego e renda.”

Santoro (2014) analisou 100 planos diretores de municípios paulistas que encontrou:

flexibilizações das normas para a expansão urbana em duas direções principais: possibilitar a expansão sobre áreas rurais, sob demanda do mercado, permitindo revisão de perímetro e urbanizações específicas nestes casos; e regularizar tipologias como o loteamento fechado, ao menos na esfera municipal. (Santoro, 2014, p. 14)

Recentemente, a Câmara de Vereadores de Joinville, Santa Catarina, aprovou a expansão da área urbana do município em 32 Km2, o equivalente a um aumento de 21% da área urbana total em uma só tacada. Esse aumento é completamente desproporcional ao crescimento populacional de Joinville, e está fadado a trazer enormes problemas ao município nas próximas décadas. Os proprietários dessas terras e as grandes incorporadoras, no entanto, agradecem.


No próximo post, discutiremos aspectos mais específicos da localização dos parcelamentos. Aqui, falamos sobre aspectos macro: quais áreas podem ou não ser parceladas e como isso influencia na forma da mancha urbana geral da cidade e sua dispersão. Na parte 3, falaremos sobre as nuances da localização dos parcelamentos dentro dessas áreas.

Referências

Liu, X., Li, X., Chen, Y., Tan, Z., Li, S., & Ai, B. (2010). A new landscape index for quantifying urban expansion using multi-temporal remotely sensed data. Landscape Ecology, 25(5), 671–682. https://doi.org/10.1007/s10980-010-9454-5

Santoro, P. F. (2014). Perímetro urbano flexível, urbanização sob demanda e incompleta: O papel do Estado frente ao desafio do planejamento da expansão urbana. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, 16(1), 169. https://doi.org/10.22296/2317-1529.2014v16n1p169