Zoneamento e planos diretores v.2.0 – parte 4

No último post da série sobre zoneamentos, veremos algumas das principais críticas feitas ao instrumento e recomendações para que eles sejam o mais eficientes e justos possível.

As críticas aos zoneamentos

O zoneamento é um instrumento que, apesar de importante, também possui suas limitações. Além disso, por sua predominância no planejamento urbano brasileiro, chegando até mesmo a ser confundido (erroneamente) com o próprio conceito de plano diretor, o zoneamento acaba muitas vezes sendo praticamente o único instrumento sendo efetivamente aplicado sobre o território. Isso traz implícita a noção de que o resultado final alcançado através das ações individuais – desde que estas estejam dentro dos limites estabelecidos pelo zoneamento – seria suficiente para garantir os objetivos de desenvolvimento urbano do Município.

Esses dois fatores motivam muitas críticas.

A primeira delas refere-se à rigidez do instrumento, visto que a permissão para uma ação (a mais típica seria a construção de uma nova edificação) acontece na base do “ou tudo ou nada”, ou seja, a Prefeitura consulta a tabela e, com base nela, permite a construção da edificação, tal como está no projeto, ou nega totalmente. Não existe meio-termo. Dessa forma, em muitos casos acontecia uma de duas situações: ou a comunidade ficava à mercê do empreendimento, recebendo todas as consequências da sua aceitação, sem poder estabelecer nenhuma condição, ou o empreendedor tinha seu projeto totalmente negado, sem possibilidade de adaptação ou ajuste, às vezes até mesmo acarretando numa subutilização do território (JUERGENSMEYER; ROBERT, 2003).

Zoneamento de Florianópolis do Plano Diretor de 1997. Fonte: IPUF.

Outra crítica ao zoneamento tradicional é o fato de ele ser, em muitos casos, excludente, na medida em que estabelece zonas nas quais a ocupação tende a ser composta apenas por grupos homogêneos, principalmente das classes mais altas (JUERGENSMEYER; ROBERT, 2003; SOUZA, 2003), por conta das exigências estritas em termos de tamanho do lote, vagas de garagem e outros dispositivos. Entretanto, o inverso também acontece, quando são criadas grandes zonas destinadas às camadas mais pobres (normalmente seguindo a ocupação já consolidada) e criando verdadeiros guetos.

Para evitar essas desvantagens do zoneamento, algumas variações foram criadas. Entre elas está a própria regulação paramétrica, citada no último post sobre o zoneamento, a criação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), o Estudo de Impacto de Vizinhança e, em outros países, dispositivos para conferir flexibilidade, tais como as Planned Unit Developments, Variance, Floating Zones, etc (KELLY; BECKER, 2000; JUERGENSMEYER; ROBERT, 2003).

Entretanto, essas variações não dão conta de amenizar um problema grave dos zoneamentos, que é o fato de eles serem eminentemente reativos, e não proativos. Seu funcionamento acaba quase que totalmente limitando-o a regular as ações dos agentes individuais, enquanto que as ações do Poder Público acabam sendo negligenciadas. É bem verdade que muitos zoneamentos incluem previsão de vias a serem implementadas (com maior ou menor sucesso nesse objetivo), mas, via de regra, a maior parte das ações do Poder Público sobre o espaço da cidade não são orientadas por esse instrumento. Um exemplo são as alocações de equipamentos urbanos e comunitários que, quando muito, incluem apenas áreas genéricas para eles. Não há uma previsão de quais equipamentos devem ser alocados em quais locais, o que poderia ser feito já de forma integrada às previsões de densidades, às áreas de expansão urbana, à localização de equipamentos já existentes e a outras diretrizes consideradas estratégicas.

Netto e Saboya (2013) destacam ainda que as próprias zonas e seus formatos tendem a dificultar uma aderência ao modo como os usos do solo se distribuem pelas cidades: enquanto as zonas costumam ser grandes e convexas, os usos seguem distribuições muito mais refinadas, com “braços” que se espalham ao longo das vias principais e diferentes tipos de usos em diferentes tipos de vias. Mesmo ao longo de uma mesma rua, há variações nas predominâncias de usos, respondendo a atratores específicos (equipamentos urbanos e comunitários, praças, edificações comerciais de grande porte, etc.) e a características locais da malha (porções com quadras curtas em vias de passagem tendem a concentrar maior quantidade de usos comerciais na escala do pedestre). Essa discrepância, ou dificuldade de harmonização, entre zonas e o gradiente de acessibilidade promovido pela malha e outras estruturas urbanas é uma limitação importante do zoneamento:

As frequentes tentativas de Planos Diretores (PDs) de ora reprimir, ora intensificar localizações (digamos, através de índices e outros estímulos ao solo criado) frequentemente falham exatamente por chocarem-se com as tendências de relação entre acessibilidade e usos do solo na estruturação das cidades.(NETTO; SABOYA, 2013, p. 235)

Uma maneira de suavizar esse problema é a vinculação das normas de uso e ocupação do solo ao sistema viário (mencionado na parte 3 desta série), que usa a própria malha e os diferentes papeis que as vias desempenham no conjunto do sistema urbano como unidade espacial para a permissão ou proibição de usos.

Apesar das críticas…

Apesar de todas essas críticas, é importante não perder de vista que o zoneamento é, sim, um dos instrumentos essenciais para o planejamento urbano de forma geral, e para os planos diretores em particular. A esse respeito, Souza (2003, p. 260) diz o seguinte:

Seria irresponsabilidade sugerir que o controle de usos (e densidades: ou seja, apontando que áreas dentro do perímetro urbano são adensáveis e que áreas devem ter seu adensamento inibido, pelo fato de sua infra-estrutura já estar saturada ou em vias de saturação) deva ser visto, generalizadamente, como alguma coisa ruim ou inteiramente supérflua.

Com efeito, muito do controle de crescimento e ocupação de áreas inadequadas tem sido efeito da aplicação do zoneamento. Da mesma forma, ele tem contribuído, em certo grau, para evitar a instalação de usos impactantes em locais impróprios. Portanto, ele tem um papel importante a desempenhar, a despeito de suas muitas falhas. A questão é ajustá-lo de forma a evitar que ele seja utilizado como um instrumento para segregar classes sociais e/ou usos que deveriam estar integrados.

Algumas características desejáveis dos zoneamentos

Como meio de aproveitar todo o seu potencial e, na medida do possível, tentar evitar algumas das críticas levantadas acima, é interessante que o zoneamento tenha as seguintes características:

Simplicidade: quanto mais simples ele for sem incorrer em problemas graves na capacidade de responder às principais diferenças do território, melhor. Quanto maior o número de zonas, tabelas, áreas e outros elementos, mais difícil é manter a noção de conjunto (próximo item) e mais fácil se perder nas diretrizes e/ou promover modificações ou distorções do seu conteúdo sem que elas sejam facilmente detectadas pela população (por exemplo, através de emendas mal intencionadas na Câmara de Vereadores).

Noção de conjunto: em oposição ao caráter de “colcha de retalhos”, é interessante que o zoneamento expresse uma ideia geral para o território, uma lógica orientadora global para todo o conjunto urbano. Dessa forma, ele pode desempenhar melhor seu papel de ser uma base espacial para diretrizes de diferentes naturezas, incluindo aí não apenas os parâmetros urbanísticos tradicionais mas também os outros instrumentos da política urbana (outorga onerosa, transferência do direito de construir, etc.). Isso pode ser feito tanto no zoneamento quanto no macrozoneamento, em escalas diferentes.

Respeito às preexistências: Não faz sentido pensar que o zoneamento será capaz de criar uma nova realidade, independente do que já existe hoje no local, do seu ambiente físico, dos processos sociais e ambientais que ali existem, da estrutura de poder, dos processos econômicos e de posse das propriedades, etc. Por isso, como dito na parte 2 desta série, é importante haver um diálogo entre o que existe e o que desejamos que passe a existir. “Diálogo” é a palavra-chave aí, ou seja, fazer com que os dois lados se alimentem mutuamente, sem haver submissão total de um deles ao outro. Apenas assim será possível atender, também, ao ponto seguinte.

Diálogo com a dinâmica da cidade: conforme já discutido no post anterior, é importante que o zoneamento dialogue com os processos que acontecem na cidade e orientam sua transformação ao longo do tempo. Assim, por exemplo, é importante que as limitações impostas às decisões individuais, por exemplo, façam sentido do ponto de vista dos interesses em jogo, das vantagens e desvantagens de cada localização em relação aos diferentes uso do solo, da atratividade das áreas e da demanda por densificação. Quando isso não acontece, sua eficácia fica comprometida, por motivos óbvios. Outra manifestação desse critério é o caráter não arbitrário da delimitação das zonas. Assim, por exemplo, é difícil justificar dois conjuntos muito diferentes de diretrizes para os dois lados de um mesmo trecho de via (a não ser, é claro, que haja preocupações ambientais e/ou paisagísticas que sejam diferentes para cada um deles), porque, salvo exceções, ambos fazem parte de uma mesma ambiência, com condições semelhantes de acessibilidade, disponibilidade de infraestrutura, etc.

Caráter proativo: uma crítica recorrente aos zoneamentos, como vimos acima, é sua tendência a apenas impor restrições às ações individuais, o que, por sua vez, implica que ele funciona permitindo ou não ações que partem da população, em vez de indicar e servir também como base para as ações do Poder Público. Entretanto, isso não é necessariamente uma limitação intransponível; ao contrário, é relativamente fácil utilizar o zoneamento como referência para prioridades de investimentos, para indicar quais equipamentos e outras estruturas são mais necessárias em cada parte da cidade, e assim por diante.

Diálogo com outros instrumentos urbanísticos: conforme esboçado acima, o zoneamento pode e deve servir de base espacial para os demais instrumentos da política urbana (código de obras, IPTU progressivo, etc.). Por exemplo, uma zona de ocupação controlada, caracterizada por condições desfavoráveis à urbanização e ao adensamento, poderia ser usada como base territorial para o instrumento da Transferência do Direito de Construir. Dessa maneira, esse instrumento: a) usaria essa zona como a referência para os locais do município que poderiam transferir índice construtivo para outros locais; e b) teria uma base coerente e amarrada aos demais parâmetros definidos pelo zoneamento (menores índices de aproveitamento, requisitos mais duros para implementação de loteamentos, exigências de maiores tamanhos do lote, etc.). Isso evitaria definições arbitrárias para as áreas sujeitas a esses instrumentos.

Isonomia no tratamento dos agentes: o zoneamento deve, sempre, tratar de maneira igual as situações que são semelhantes, criando diferenciações apenas quando há motivos urbanísticos, ambientais ou legais para isso. Em outras palavras, as diferenciações devem ser motivadas por questões coletivas, e não por interesses individuais (a favor ou contra). Na prática, vemos muitas situações em que esse princípio é violado, normalmente envolvendo zonas pontuais criadas para favorecer proprietários  específicos com índices mais generosos e/ou definições mais amplas de usos permitidos.

Promoção da diversidade e da justiça social: a tradição de adotar o zoneamento como um instrumento para dividir grupos sociais e criar áreas homogêneas, tornando mais difícil a presença de grupos considerados indesejados em algumas áreas também não é algo necessariamente intrínseco ao instrumento, ou inescapável à sua natureza: é possível pensar zoneamentos que sejam inclusivos, que não imponham requisitos mínimos que excluam desnecessariamente determinados grupos sociais, que permitam misturas de usos e de tipos arquitetônicos, e assim por diante. As próprias Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) podem fazer parte do arsenal de tipos de zonas a serem empregadas, bem como dispositivos como a cota social, que determina uma porcentagem mínima de todos os empreendimentos a ser destinada a habitações de interesse social.

Referências

KELLY, Eric; BECKER, Barbara. Community planning: an introduction to the comprehensive plan. Washington: Island Press, 2000.

JUERGENSMEYER, J. C.; ROBERT, T. Land use planning and development regulation law. St. Paul: Thomson West, 2003.

NETTO, V. M.; SABOYA, R. T. DE. A urgência do Planejamento. In: GONZALES, S.; FRANCISCONI, J.; PAVIANI, A. (Eds.) . Planejamento & Urbanismo na atualidade brasileira: objeto, teoria e prática. São Paulo: Livre Expressão, 2013.

SOUZA, Marcelo Lopes. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.