Não muito tempo atrás, uma reportagem no principal jornal de Florianópolis citou uma pesquisa realizada em Brasília por um Doutorando da área de planejamento urbano. Segundo a reportagem, a pesquisa dizia que Florianópolis tinha a pior mobilidade urbana do País e uma das piores do mundo. A pesquisa logo me despertou interesse, uma vez que as poucas informações que foram disponibilizadas sugeria que o método utilizado tivesse sido o da Sintaxe Espacial, teoria pela qual tenho muito interesse e sobre a qual, inclusive, já publiquei um post aqui no Urbanidades.
Reportagem original e algumas repercussões:
- Florianópolis tem pior mobilidade urbana do Brasil;
- Florianópolis tem a pior mobilidade entre as capitais brasileiras;
- A segunda pior mobilidade urbana do mundo;
O que parecia estranho é que a reportagem falava de mobilidade urbana, sem especificar o que seria isso. As repercussões falam em trânsito, transporte coletivo, ciclovias e outras coisas relacionadas. Entretanto, a Sintaxe Espacial não trabalha diretamente com isso, mas apenas indiretamente. Então, fui verificar.
Consegui acessar a tese original em PDF. Aliás, gostei bastante do trabalho. Já a reportagem original deixou muito a desejar.
O que a pesquisa diz?
Para começo de conversa, o que podemos entender por mobilidade urbana? Bom, isso não fica muito claro na reportagem, mas em um sentido mais coloquial, eu diria que mobilidade urbana refere-se, pelo menos, à possibilidade de deslocamento por automóveis e transporte coletivo pela cidade, assim como por bicicletas e a pé (portanto as repercussões fariam sentido, se a reportagem tivesse sido fiel aos resultados do estudo e este realmente tratasse da mobilidade). Alguns fatores mínimos deveriam ser considerados num estudo desse tipo, tal como a quantidade e abrangência de linhas de transporte coletivo, sua frequência, pontualidade, etc. Deveria também estudar os principais fluxos ao longo do dia, através de uma pesquisa de origem e destino, além de verificar se o sistema de ciclovias abrange boa parte da cidade ou não, entre outras coisas.
Acontece que a Sintaxe Espacial, metodologia utilizada no trabalho, não estuda nada disso, nem se propõe a estudar. O que ela se propõe a fazer é estudar o espaço da cidade a partir da sua configuração, ou seja, a partir do traçado do sistema de espaços públicos ou, mais simplificadamente, do sistema viário. O trabalho em questão, de autoria de Valério Medeiros, baseia-se especificamente nas linhas axiais que fazem justamente isso: descrevem o sistema urbano em termos de grandes linhas retas que cobrem todo o sistema de espaços públicos.
A partir disso, ele tira várias conclusões sobre a forma de 164 cidades ao redor do mundo. Sua principal preocupação é saber se existe uma cidade típica no Brasil (a partir dos seus aspectos configuracionais, que são as variáveis utilizadas pela Sintaxe Espacial).
Sobre Florianópolis, o que o trabalho conclui é que sua configuração da sua malha viária é um complicador para a mobilidade urbana, porque sua trama dispersa, pouco conectada e pouco compacta, acaba induzindo a uma grande segregação dos espaços. Em outras palavras, a integração global do sistema é a menor do País, e a 2a menor do mundo entre aquelas consideradas no estudo. O autor destaca que isso é, em parte, decorrente da topografia da Ilha, que impõem descontinuidades à malha. Eu acrescentaria pelo menos mais duas razões:
- a ocupação inicial em núcleos, ou freguesias, dependentes muito mais do transporte pelo mar do que por terra, que acabou gerando centralidades dispersas pela ilha;
- o padrão de “espinha-de-peixe” que caracteriza grande parte dos assentamentos, e que não foi combatido pela legislação territorial (especialmente de parcelamento do solo), gerando grandes partes da cidade dependentes de poucas vias principais, que acabam ficando sobrecarregadas. Mesmo em locais em que a topografia permitiria mais vias, isso muitas vezes não aconteceu, contribuindo para diminuir o índice de integração.
Mapa axial de Florianópolis (MEDEIROS, 2006)
Concluindo
Por isso, considero um erro grave de comunicação o que a referida reportagem fez: utilizando uma interpretação errada e simplória do trabalho de pesquisa, quis nos fazer acreditar que o estudo havia apontado Florianópolis como a cidade com pior mobilidade urbana do País. O estudo não mostra isso, e estudar a mobilidade urbana não era sua intenção. A própria reportagem reconhece isso quando diz:
Medeiros avaliou como a forma das cidades condiciona a mobilidade. A partir da identificação de rotas em que é possível a passagem de veículos, o pesquisador calculou o chamado “valor de integração” de cada cidade, com o auxílio de um software. Foram levadas em consideração a organização e a conexão das ruas.
Observe – e isto é extremamente importante – que eu não estou defendendo a mobilidade urbana de Florianópolis. Do meu ponto de vista, ela é péssima, mas isso não pode ser sustentado pela pesquisa do Medeiros. Acredito que seja essencial buscarmos mais pesquisas para podermos ter uma visão mais completa – e cientificamente embasada – das nossas reais condições de mobilidade. E mais importante ainda, precisamos lutar para que as decisões sejam tomadas com base em informações de qualidade. Nesse sentido, a ciência tem muito a contribuir.
Referência bibliográfica
MEDEIROS, Valério. Urbis Brasiliae: ou sobre cidades do Brasil. Tese de Doutorado. UnB. Brasília, 2006.
Prezado Renato,
sou usuário do transporte coletivo de Florianópolis e, apesar de leigo, um interessado no tema da mobilidade urbana. Tive a oportunidade de viver recentemente por 6 meses em Barcelona e de conhecer melhor como se movem os espanhóis, holandeses, franceses, etc…
Ao voltar para cá e para os ônibus da Canasvieiras TC não consigo parar de pensar que há ótimas soluções para Florianópolis. O fato de haver pouco adensamento entre comunidades do Sul e do Norte da Ilha e com a Beira-Mar (sul e norte) me parece perfeito para a implementação de um bonde elétrico – mais especificamente um veículo leve sobre trilhos (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ve%C3%ADculo_Leve_sobre_Trilhos). Li que já existem vários em funcionamento no Brasil.
Não seria uma boa ideia? Há algum projeto nesse sentido? Como podemos estimular essa proposta?
Atenciosamente,
Paulo Poli
Nao conhecia Florianópolis e resolvi ali passar o Carnaval. Acho que foi uma das piores escolhas da minha vida! realmente, o Turista nao consegue se deslocar para nenhum lugar, a nao ser que alugue um carro. Onibis nao existem Taxis, vejam que piada, sao somente 250 para a cidade toda… em poucas palavras: Floripa nunca mais
Parabéns pela postagem!!! Li a reportagem quando fazia um trabalho acadêmico e fiquei, como o amigo, “com um pé atrás” à respeito das informações ali fornecidas. Pesquisei um pouco mais e encontrei seus esclarecimento, muito obrigado!!! Infelizmente não consegui baixar a tese o Dr. Valério, assim, usarei suas interpretações (citando-o, claro;) em meu trabalho.
Grande abraço!
Ola Renato. fiquei muito intrigada com o que estaria escrito na tese. Seria possivel enviar a tese de doutorado em PDF para tornamos conhecimento ?
agradeco desde ja a atencao
Janaina
A tese pode ser baixada no banco de teses de UnB. O link direto é http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2525
Att,
Renato.