Dos muitos textos recentes sobre o problema das enchentes e catástrofes relacionadas ao clima, um que me chamou a atenção foi “Desastres Urbanos: que lição tirar?”, de Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. Especificamente, achei interessante a identificação de quatro “lógicas políticas” que costumam caracterizar a gestão nas cidades brasileiras. Reproduzo aqui uma pequena parte do texto (que pode ser lido, completo, aqui).
Na organização atual do chamado pacto federativo, couberam às Prefeituras estas últimas funções. Para tanto, desde o início dos anos 1980, vem sendo descentralizada para os municípios parcelas significativas dos recursos fiscais manipulados pelo Estado brasileiro. Na ausência de vigorosas instituições políticas capazes de constituírem a cidadania, essa descentralização vem alimentando 4 lógicas políticas particularistas que coexistem na organização e no funcionamento da administração urbana, bloqueando, como consequência, a adoção dos necessários instrumentos de planejamento e gestão pública de correntes da afirmação da lógica do universalismo de procedimentos. Estas lógicas esquartejam a máquina pública em vários centros de decisão que funcionam segundo os interesses que comandam cada uma delas. São elas: a) o clientelismo urbano que trouxe para as modernas cidades brasileiras o padrão rural de privatização do poder local, tão bem transcrito por Vitor Nunes Leal na expressão coronelismo, enxada e voto, mas que nas condições urbanas transformou-se em assistencialismo, carência e voto. Trata-se da lógica que está na base da representação política no Poder Legislativo Municipal, mas que precisa controlar parte da máquina administrativa para fazer a mediação do acesso pela população ao poder público. O clientelismo urbano é alimentado por práticas perversas de proteção de uma série de ilegalidades urbanas que atendem a interesses dos circuitos da economia subterrânea das nossas cidades (comércio ambulante, vans, etc.) e a necessidades de acessibilidade da população às condições urbanas de vida, dando nascimento às nossas favelas e às entidades filantrópicas que, travestidas de ONgs, usam recursos públicos para prestar privada e seletivamente serviços coletivos que deveriam ser providos pela Prefeitura. Atualmente, esta lógica vem se reconfigurando pela presença nas câmaras de vereadores de representantes dos interesses da criminalidade, como é caso do fenômeno das milícias no Rio de Janeiro. b) o patrimonialismo urbano fundado na coalisão dos históricos interesses presentes nos circuitos da acumulação urbana, representados pelas empreiteiras de obras públicas, concessionárias dos serviços públicos, entre elas o poderoso setor de transportes coletivos, e os do mercado imobiliário. Esta lógica de gestão das cidades constitui-se historicamente na etapa de transição da economia agroexportadora para a economia industrial, pela reconfiguração do capital mercantil em capital urbano, mas que mantém os traços fundamentais desta forma de acumulação, ou seja, a manipulação dos preços e a corrupção, obtidas pelo controle privatista de parte da máquina pública. Nos anos 1950-1970, este circuito se afirma e seus atores passam a constituir importante parcela do poder urbano em razão da explosão demográfica e econômica das nossas cidades impulsionadas pela expansão do Estado Desenvolvimentista, favorecendo a realização de vultosas obras viárias, pontes, túneis, etc., custosas, mas de finalidades duvidosas. Por outro lado, a criação do Sistema Financeiro da Habitação comandado pelo BNH consolidou o setor imobiliário, fez expandir as empresas de construção civil e sua presença no comando da administração das cidades. c) o empreendendorismo urbano é uma lógica emergente impulsionada pelo surgimento de um complexo circuito internacional de acumulação organizado em torno da transformação das cidades em “máquinas de entretenimento”, para usar a expressão cunhada pelo sociólogo americano Terry Clark. Integra este circuito uma miríade de interesses, protagonizados pelas empresas de consultoria em projetos, pesquisas, arquitetura, de produção e consumo dos serviços turísticos, empresas bancárias e financeiras especializadas no crédito imobiliário, empresas de promoção de eventos, entre outras. Tais interesses têm como correspondência local as novas elites locais portadoras das ideologias liberais que buscam na aliança com aqueles interesses recursos e fundamentos de legitimidade do projeto de competição urbana. As novas elites buscam a representação política através do uso das técnicas do marketing urbano, traduzido em obras exemplares da “nova cidade”, o que é facilitado pela fragilidade dos partidos políticos. A política urbana passa a centralizar-se na atração de médios e mega-ventos e na realização de investimentos de renovação de áreas urbanas degradadas, prioridades que permitem legitimar tais elites e construir as alianças com os interesses do complexo internacional de entretenimento. Na maioria dos casos, esta orientação se materializa na constituição de bolsões de gerência técnica, diretamente vinculados aos chefes do executivo e compostos por pessoas recrutadas fora do setor público. Portanto, a lógica do empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica no abandono e mesmo desvalorização da organização burocrática. Os salários dos funcionários clássicos são aviltados, suas carreiras perdem prestígios, não são capacitados, os cadastros são abandonados e mesmo a base técnica dos órgãos públicos é fragilizada. d) o corporativismo urbano traduzido na presença dos segmentos organizados da sociedade civil nas arenas de participação abertas pela Constituição de 1988, cuja promessa era a constituição de um padrão republicano de gestão da cidade que, se implantado, criaria a condições para o surgimento de uma gestão urbana fundada no universalismo de procedimento. Os municípios onde a correlação de forças levou ao comando das Prefeituras coalisões de forças comprometidas com o projeto de constituição de uma verdadeira esfera pública local, vêm sofrendo reveses decorrentes, de um lado, em razão do baixo índice de associativismo vigente na sociedade – apenas 27% da população adulta integra as formas de organização cívica como sindicato, associações profissionais, partidos, entidades de bairro, etc. – e , de outro lado, pela diminuição do ímpeto dos movimentos sociais nas cidades. Estes dois fatos vêm bloqueando a constituição de uma aliança entre o escasso mundo civicamente organizado e o vasto segmento da população urbana que se mobiliza politicamente apenas de maneira pontual e temporária. O resultado é que as experiências participativas resultam no atendimento dos interesses destes segmentos organizados, não forçando a adoção de um universalismo de procedimentos, pressuposto da constituição de uma burocracia planejadora.
Dica de Luciana Andrade.
Entendo que o autor faz sua avaliação voltada a realidade de nossas cidades como um todo. Não podemos esquecer a histórica desigualdade social no país, a começar pela concentração de terra nas mãos de poucos e pelo escravismo, condicionando relações insustentáveis de desenvolvimento.
Rememorando, aliás, no início do século XX uma massa de ex-escravos e de brancos pobres e excluídos, vêm formar um imenso contingente em torno das cidades, fomentando uma urbanização desenfreada e desorganizada. Apesar de algumas significativas medidas de inclusão por parte do Estado nos anos que se seguiram (do que entendo em sua maioria focalizada), o clientelismo e o patrimonialismo arraigados contribuíram para a precariedade urbana – uma das razões apontadas como parte das fatalidades citadas.