A importância da participação popular

Este é um post que eu gostaria de não precisar fazer. Esperava que, a essa altura, a importância da participação popular nos processos de planejamento e gestão urbanos fosse algo plenamente reconhecido e respeitado. Entretanto, a realidade é bem diferente. Florianópolis, por exemplo, que em muitos aspectos é considerado um Município desenvolvido, vem há 7 anos dando uma aula do que não fazer com relação à participação popular. Para fechar com “chave de ouro”, o anteprojeto foi aprovado na Câmara de Vereadores com 305 emendas aprovadas sem haver discussão participativa. Na expectativa de contribuir para mudar esse quadro, discuto a seguir alguns benefícios da participação popular sob um ponto de vista estritamente técnico,  para mostrar que, mesmo sem considerar aspectos morais ou éticos (que provavelmente são ainda mais importantes), a participação é essencial.


Votação do PD Fpolis na Câmara de Vereadores. Foto: Eduardo Valente.

Os benefícios da participação

Conhecer os valores e prioridades daqueles para os quais se está planejando

O benefício mais óbvio e simples é o conhecimento proporcionado sobre os valores e prioridades das comunidades e da sociedade em geral. É verdade que planejadores urbanos e urbanistas são treinados (supostamente) para conhecerem algumas das necessidades básicas das populações e das cidades em geral. Entretanto, pela própria forma como esse conhecimento é gerado e disseminado, ele possui uma natureza genérica, isto é, ele tem a pretensão de descrever propriedades e regularidades que sirvam para uma quantidade grande de situações. No entanto, essa pretensão de generalização é construída a partir de estudos pontuais, feitos em locais, culturas e realidades específicas.

Só é possível se aprofundar nos valores, desejos e prioridades de uma comunidade quando a ouvimos.

Então, quando falamos das condições necessárias para o sucesso de uma área urbana segundo o que Jacobs (2000) defendia, por exemplo, estamos na verdade generalizando suas recomendações e explicações para contextos diferentes do de Nova Iorque dos anos 60. Quando esses “conhecimentos” são repassados e reapropriados em contextos diferentes, é natural que aqueles que possuem maior aderência a essas outras realidades sejam mais frequentemente enfatizados e reproduzidos, o que acaba por reduzir o escopo desse conhecimento a uma relativamente pequena fração de aspectos.

Qualquer pessoa que já tenha participado de um processo real de planejamento sabe que a miríade de aspectos a serem levados em consideração é incomparavelmente maior do que o que pode ser encontrado em livros. É nesse sentido que ouvir a população é essencial para entender seus desejos, aspirações, prioridades e valores de forma aprofundada. Sem ela, os técnicos correm o risco de, por um lado, manterem-se na superífice dos problemas, adotando soluções livrescas e desconectadas das reais condições do problema ou, por outro, de assumirem valores e prioridades que, na realidade, não correspondem àqueles da sociedade para a qual ele está trabalhando.

Abrangência dos aspectos considerados

Como apontei em um artigo recente, uma das maiores preocupações de quem toma decisões importantes (e o planejamento urbano baseia-se nelas) é certificar-se de que está considerando todos os aspectos relevantes do problema, ou seja, de que não está deixando nada importante de fora. Isso é compreensível, uma vez que a história está repleta de situações em que consequências não previstas inicialmente foram catastróficas, ou mesmo que aspectos básicos do problema não foram levados em consideração pelo planejador / arquiteto.

A abrangência dos aspectos considerados e das consequências previstas é sempre um ponto de tensão, que por sua vez pode ser suavizada pela participação.

Por isso, do ponto de vista técnico é extremamente importante poder contar com a incorporação de múltiplos pontos de vistas proporcionados pela participação de uma parcela o mais ampla e representativa possível da sociedade. Há informações relevantes que não são encontradas em mapas, tabelas e fotografias, apenas na experiência cotidiana das pessoas. O conhecimento gerado por essa experiência, na grande maioria dos casos, não está registrado em nenhum documento: precisa ser cuidadosamente construído em um processo colaborativo entre técnicos e a população.

Sobre isso, é muito importante fazer duas observações.

A primeira é que uma participação ampla deve contar com representatividade de todos os setores. Apesar de ser uma afirmação óbvia, já presenciei mais de uma situação em que aqueles que mais pregavam a necessidade e obrigatoriedade do caráter democrático, defendendo muito apropriadamente parcelas historicamente alijadas dos processos decisórios, passaram a tentar impedir que representantes de setores com interesses diferentes dos seus também fossem incorporados ao debate.

Em segundo lugar, essa necessidade de ampliação dos pontos de vista vale para todas as etapas do processo de planejamento, e não apenas para a fase inicial de leitura. Conforme será tratado em um post futuro, uma das falácias mais comuns a atentar contra a participação popular é dizer que ela deve se restringir apenas à etapa de leitura. Entretanto, da mesma forma que nas etapas mais iniciais, a abrangência dos aspectos levados em consideração é ampliada quando a população participa também da concepção, dos estudos exploratórios e da obtenção de consenso quanto às propostas. O conhecimento popular, não sistemático e empírico não pode ser desprezado quando se trata de antecipar possíveis consequências para as ações sendo consideradas. Muitas vezes propostas semelhantes já foram implementadas no passado, e suas lições podem ser mais valiosas do que qualquer teoria científica”. Além disso, o simples fato de conhecer melhor seus próprios valores e desejos permite que a população consiga, em muitos casos (não todos), avaliar com maior propriedade o impacto de algumas ações.


Votação do PD Fpolis na Câmara de Vereadores. Foto: Eduardo Valente.

Algumas considerações gerais

Há, tanto no meio técnico quanto junto a grande parte da população, uma falsa dicotomia entre a técnica e a participação. Ambas podem conviver perfeitamente e auxiliar uma à outra, com valiosos ganhos advindos da sinergia entre elas. Isso implica, entretanto, uma profunda reestruturação na formação dos técnicos, que precisam desenvolver a habilidade de organizar, preparar, conduzir e sistematizar os resultados dessas interações. Reuniões e assembleias conduzidas sem esse conhecimento tendem a ser improdutivas e desgastantes, trazendo mais prejuízos que benefícios (infelizmente, prestam-se também para “justificar” processos extremamente deficientes ante o judiciário).

Enquanto essa reestruturação não acontece, há extensa literatura sobre processos participativos, especialmente vindas do exterior. Recomendo especialmente o “Facilitator’s guide to participatory decision-making“, de Sam Kaner et al, e o “The consensus building handbook: a comprehensive guide to reaching agreement“, de Lawrence Susskind.

Cabe aos técnicos darem esse “salto”, sob pena de comprometerem seu próprio trabalho e suas reputações.

Referências

KANER, S. et al. Facilitator’s guide to participatory decision-making. Gabriola Island: New Society Publishers, 1996.

SUSSKIND, L.; MCKEARNAN, S.; THOMAS-LARMER, J. (EDS.). The consensus building handbook: a comprehensive guide to reaching agreement. Thousand Oaks, Calif: Sage Publications, 1999.

Author: Renato Saboya

Arquiteto e Urbanista, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSC e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo - PósARQ - UFSC.