Mais sobre o trânsito

O post “As soluções para o trânsito” despertou a atenção do Jornal O Vale, de São José dos Campos – SP, que publicará no mês de julho uma revista de comemoração ao aniversário da cidade. Por isso, pediram-me que respondesse a algumas perguntas relacionados ao problema do trânsito. Minha resposta iniciou esclarecendo que não sou especialista em trânsito, transportes ou acessibilidade, e que apenas tenho interesse nesses temas como Urbanista e Planejador Urbano. Por isso, também, tenho algumas opiniões sobre o assunto que têm um ponto de vista um pouco diferente do que normalmente acabam sendo os temas tocados com maior ênfase nessas discussões, que via de regra têm na capacidade de se deslocar pela cidade seu ponto principal.


Fonte: desconhecida (source: unknown)

Segue, abaixo, a íntegra das  minhas colocações, com algumas pequenas modificações para adaptá-la ao Urbanidades.

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Em primeiro lugar, gostaria de fazer uma diferenciação entre os conceitos de mobilidade e acessibilidade, chamando a atenção para o fato de que a segunda é mais importante que a primeira. Mobilidade diz respeito à capacidade de se movimentar pela cidade, de forma mais veloz e/ou mais rápida. Acessibilidade diz respeito à capacidade ou facilidade de acessar os lugares, atividades, pessoas, bens e serviços desejados. Portanto, apesar de estarem intimamente conectadas, mobilidade e acessibilidade não são a mesma coisa. Mobilidade é uma das maneiras de alcançar acessibilidade, que é um objetivo mais amplo e essencial. Apesar disso, mobilidade acaba sendo “vendida” como a única maneira de resolver o problema da acessibilidade e, por isso, temos ações que visam quase que exclusivamente ao aumento da velocidade dos veículos, à diminuição de cruzamentos e à ampliação da capacidade de escoamento das vias.

Em função dessa diferenciação, defendo alguns princípios gerais que incorporem não apenas a busca por mobilidade, mas principalmente a melhoria das condições de acessibilidade:

  • Diminuir a necessidade de deslocamentos pela cidade;
  • Otimizar a utilização do espaço de circulação, através do incentivo a meios de transporte que consumam menos espaço por pessoa.

O primeiro princípio lida mais com o conceito de acessibilidade, uma vez que não necessariamente passa pela necessidade de maior velocidade de deslocamento. Ele envolve:

  • o ordenamento dos usos e atividades urbanos de maneira que as pessoas não precisem se deslocar com muita frequência nem em longos trajetos. Um exemplo disso é estimular o surgimento e a manutenção de bairros de uso misto, em que comércio e residência coexistam proximamente, evitando a necessidade de grandes deslocamentos para compras básicas. Outro exemplo é a localização de áreas de emprego e de áreas de moradia próximos uns dos outros, para evitar grandes deslocamentos entre casa e trabalho;
  • a manutenção de um perímetro urbano relativamente compacto, com poucos vazios urbanos em áreas com infraestrutura disponível. O modelo atual de ocupação do solo incentiva a retenção especulativa de imóveis dentro do tecido urbano, enquanto que ao mesmo tempo as “franjas” da cidade são empurradas para cada vez mais longe, em busca de terrenos com menor custo. Isso cria uma situação quase paradoxal, em que a ocupação torna-se cada vez mais distante do centro densificado, ao mesmo tempo em que há uma quantidade imensa de terra sem ocupação, criando uma cidade altamente dispersa e pouco eficiente do ponto de vista da instalação de infraestrutura, incluindo a de transporte. Levar água, esgoto, energia elétrica e outras infraestruturas até essas ocupações distantes é muito mais caro do que se a mesma quantidade de pessoas estivesse mais concentrada em uma área menor (o que poderia ser feito sem a necessidade de densidades excessivamente altas, tendo em vista a quantidade de áreas vazias existentes atualmente à espera de valorização). O mesmo vale para o transporte: no atual modelo de funcionamento, é inviável que as linhas de transporte coletivo façam percursos tão longos para transportar pequenas quantidades de pessoas. Além disso, o simples fato de as ocupações estarem cada vez mais distantes aumenta as necessidades de deslocamentos para os empregos, normalmente localizados em áreas mais centrais.
  • manter uma malha de vias com boa conectividade, de forma a oferecer várias alternativas de trajetos, ao invés de concentrar todos os fluxos em algumas poucas vias principais. Além da vantagem óbvia de dividir os fluxos, os trajetos alternativos geralmente representam distâncias menores a serem percorridas. A criação de novas conexões em áreas já urbanizadas, apesar de interessante, é mais difícil de ser viabilizada. Entretanto, o problema da falta de conexão entre as vias é cotidianamente reproduzido nos novos loteamentos, que insistem em criar vias que não se conectam com as vias do entorno, apesar da lei federal 6766/79 que obriga o contrário em seu artigo 4º inciso IV. Esse problema poderia ser facilmente evitado se, no momento da aprovação dos novos loteamentos, esse requisito fosse exigido pelos responsáveis pela aprovação. É desnecessário dizer que os condomínios fechados, nesse sentido, são péssimos para a acessibilidade urbana, lembrando que o que hoje é periferia, em um futuro próximo provavelmente não será mais.

O segundo princípio é mais conhecido, e passa pela valorização do transporte coletivo e de meios não motorizados, em detrimento do uso do automóvel. Várias medidas possíveis foram elencadas no post “As soluções para o trânsito“. O automóvel possui baixíssima eficiência em termos da relação entre o espaço de circulação ocupado e a quantidade de pessoas transportadas. Por isso, o transporte público parece ser a única solução realmente efetiva para o problema da mobilidade e acessibilidade urbanas. Isso é consenso em todos os congressos e seminários sobre o tema, em todas as discussões públicas sobre plano diretor e desenvolvimento urbano, e mesmo no discurso dos políticos em campanha. E, no entanto, entra ano e sai ano e a situação não muda.

A única explicação plausível para esse fato é que há alguém, ou alguns, que estão lucrando com o atual estado das coisas. Quem poderia lucrar com:

  • ônibus lotados, aumentando a proporção entre as receitas obtidas e os custos de operação do sistema?
  • milhões e milhões de reais gastos em asfalto e ampliação de vias que rapidamente estão esgotadas novamente?
  • ampliação da venda de carros e do consumo de combustíveis?
  • novos loteamentos que minimizam as vias de circulação e ampliam a quantidade de terra a ser vendida?
  • áreas vazias dentro do tecido urbano, à espera de uma valorização que é, em grande parte, decorrente da implantação de infraestrutura feita com dinheiro público?

A resposta não é difícil de imaginar; certamente não é a população em geral.


Vazios Urbanos em Campinas – SP (Costa et al, 2008)

2 thoughts on “Mais sobre o trânsito

  1. Marcos Junker says:

    Muito bom o que foi escrito. Creio que um bom exemplo do que pode dar certo é o Pedra Branca em Palhoça.

  2. thaisa correa says:

    Bom dia, gostaria da sua opniao e experiencia, a respeito de projeto de uso misto: residencial e comercial em uma via de acesso rapido (expressa) e pouca frente de terreno. Vale a pena a viabilidade de mesclar o uso? ou correriamos o risco de afetar o uso publico do espaco?
    obrigada.

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