O modelo tradicional de segregação em cidades brasileiras, segundo o qual os mais ricos localizariam-se no centro e os pobres na periferia, é contestado por Flávio Villaça em diversos trabalhos e, em especial, em seu livro “Reflexões sobre as cidades brasileiras“. Villaça oferece uma visão alternativa que, segundo ele, possui melhor capacidade explicativa e de articulação com outros aspectos socioeconômicos importantes. Essa nova visão é a de que há uma concentração das classes de mais alta renda em uma determinada região, ao invés de elas estarem distribuídas aleatoriamente ou concentradas no centro da cidade.
Analisando São Paulo, Villaça mostra que há uma concentração de diversos tipos de benesses em uma região específica da cidade, o seu quadrante sudoeste: alta renda, alto Índice de Desenvolvimento Humano, menores taxas de homicídios, menor vulnerabilidade social, etc. Até mesmo o clima nessa região é mais ameno do que o restante da cidade, por causa de uma maior arborização e quantidade de parques. Ele defende que esse padrão acontece em todas as metrópoles brasileiras e em cidades “acima da média” (VILLAÇA, 2012, p. 62), presumivelmente referindo-se a cidades maiores em termos populacionais.
Concentração de camadas de mais alta renda no quadrantes sudoeste de São Paulo.
Sugai (2015) encontrou o mesmo padrão em Florianópolis, e outros autores encontraram padrões semelhantes em outras cidades. Outra corroboração a essa hipótese de Villaça pode ser vista no site “Radical Cartography”, que mostra em belos mapas a distribuição de renda em 25 cidades americanas. Não são todas, mas muitas cidades também possuem esse tipo de distribuição das classes mais ricas em regiões específicas do espaço urbano.
Fonte: Radical Cartography.
Através de processos ideológicos, a classe dominante procura esconder a desigualdade na produção do espaço urbano, tentando naturalizar processos que são, na verdade, profundamente artificiais. Villaça dá o exemplo da cidade do Rio de Janeiro, em cuja Zona Sul estão localizadas as classes de alta renda. Essa região da cidade é tratada como se fosse a própria cidade.
Assim, quando a Prefeitura abre uma nova via na Zona Norte, ela está beneficiando a Zona Norte. Quando ela abre uma via na Zona Sul, ela está beneficiando ‘a cidade’. (VILLAÇA, 2012, p. 60)
O mesmo vale para o centro da cidade. Apenas o centro das elites é considerado o verdadeiro centro da cidade. O centro que ela abandonou e que agora é apropriado pelas classes populares é o centro “antigo”, é o que está “deteriorado”.
Além desse aspecto ideológico, Villaça (2012) argumenta que mais dois aspectos podem ser articulados a partir dessa abordagem da segregação por regiões da da cidade:
- com os processos políticos, através dos quais tanto a localização dos aparelhos do Estado (intituições, policiamento, infraestrutura, etc.) quanto a implementação de sistemas de transportes podem ser direcionadas para essas regiões. A concentração em áreas relativamente pequenas (relativamente ao tamanho da cidade como um todo) permite direcionar recursos escassos para as áreas ocupadas pelas classes dominantes;
- com os aspectos econômicos, especialmente aqueles relacionados ao mercado imobiliário e à valorização da terra. Nessas regiões, a dinâmica imobiliária é muito mais alta do que em outros lugares, assim como o preço da terra.
O local dos empregos
Em seguida, Villaça desenvolve o argumento de que essa concentração das classes de alta renda em uma região da cidade é parte de uma estratégia de dominação através do espaço urbano. Para sustentar essa afirmação, ele analisa, em primeiro lugar, a concentração dos empregos em São Paulo. No que diz respeito aos empregos do setor terciário, há uma intensa concentração nessa mesma região de alta renda. Esses empregos caracterizam-se por acontecerem em locais que dependem da presença do público consumidor (ao contrário, por exemplo, das indústrias) e também por serem o setor no qual a maior parte dos ricos trabalham (bancos e instituições financeiras, profissões liberais, consultórios, e atividades ligadas ao marketing, informática, etc.). Além disso, representam boa parte dos serviços destinados ao consumo da classe de alta renda (cabeleireiros, pet shops, shopping-centers, escolas elementares e secundárias, bares e casas noturnas, etc.).
O resultado dessas condições é que as classes possuem tanto os empregos quanto os pontos de consumo e os serviços próximos a si, economizando quantidades significativas de tempo em seus deslocamentos diários:
Assim, os mais ricos minimizam os tempos de deslocamento para os locais de diversão, lazer, compras e serviços de todos os membros da família. (VILLAÇA, 2012, p. 64)
Como essas áreas e esses serviços abrigam também uma grande quantidade de empregos para as camadas mais pobres (garçons, faxineiras, balconistas, office boys, etc.), estas precisam se deslocar grandes distâncias para poderem trabalhar diariamente.
Com as indústrias, também grande fonte de empregos, por outro lado, a situação é diferente: a maior parcela dos empregos é destinada à população mais pobre, e apenas uma proporção muito pequena aos mais ricos. Por isso, não há competição por parte destes últimos pela localização próxima às indústrias. Isso acontece apenas entre os mais pobres, e aqueles que perdem essas disputas (os mais pobres entre os pobres) acabam obrigados a se instalar em áreas ainda mais distantes de tudo.
O tempo de deslocamento e os privilégios da localização
O tempo de deslocamento na cidade, portanto, é o principal fator explicativo da estrutura da distribuição das classes sociais no espaço. Como coloca Villaça:
a otimização dos tempos gastos no deslocamento espacial (tempo) dos moradores das cidades é o mais importante fator explicativo da organização do espaço urbano e do papel deste na dominação social que se processa por meio dele. A classe dominante manipula a produção desse espaço, priorizando sempre a otimização dos seus tempos de deslocamento. (VILLAÇA, 2012, p. 66-67 – grifo no original)
Como os mais pobres possuem várias concentrações de emprego, resulta que em cada família é bem provável que cada membro tenha que se deslocar para um local diferente do outro, e distante da moradia. Como nessas famílias a quantidade de adolescentes trabalhando é maior, o problema é amplificado:
O marido trabalha num local, a esposa em outro local diferente (em geral, não só longe de sua moradia, mas também longe do emprego do marido), os filhos adolescentes trabalham em outro local e as crianças vão a uma escola ou creche que, talvez, por sorte, esteja perto da casa ou dos locais do trabalho da mão ou do pai. (VILLAÇA, 2012, p. 67)
Obviamente, esse fardo impacta de forma negativa no tempo que sobra para as famílias pobres ao final do dia, no tempo para descansarem e se divertirem, assim como nas possibilidades de desfrute da cidade e da participação em atividades complementares (natação, judô, cursos de aperfeiçoamento, etc.). As dificuldades econômicas são, portanto, amplificadas pela distribuição no espaço.
Para piorar essa situação, a prioridade nos investimentos relacionados à mobilidade e acessibilidade urbana tem sido o automóvel particular e o conjunto de infraestruturas que ele demanda, em detrimento dos meios coletivos de transporte mais frequentemente utilizados pelas populações de baixa renda. Enquanto viadutos, rodovias e ampliações do sistema viário recebem vastos recursos, os sistemas de ônibus e de metrô avançam muito lentamente. Dessa forma, a cidade penaliza quem já é mais penalizado.
Muito bom o resumo, professor! Obrigada por esse site. 🙂