Parcelamento do solo urbano – Parte 1

O parcelamento do solo, ou seja, a divisão da terra em propriedades menores para fins de urbanização, é um dos processos urbanos mais importantes das cidades brasileiras. Seu papel no crescimento urbano é enorme, bem como na alocação das classes sociais no espaço, o que traz consigo questões de acesso a equipamentos e infraestrutura que são cruciais em um contexto desigual como o nosso.

Nesta série de posts, vamos discutir seus aspectos mais centrais e algumas de suas implicações para o desenvolvimento urbano.

Algumas definições básicas e iniciais

O parcelamento do solo é a divisão de terras (normalmente glebas) em lotes para fins de urbanização (ou seja, ocupação para fins urbanos).

A Lei Federal 6766/79, que o regulamenta no Brasil em nível federal, define o lote como o “terreno servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe” (Art. 2º, § 4º). Já Castello (2008, p. 101) o define como “porção de terra, autônoma, que resulta de loteamento ou desmembramento, e cuja testada é voltada para o logradouro público reconhecido ou projetado.

Por ser a unidade básica no sistema de propriedade da terra, o lote serve como base e desempenha papel importante tanto no cadastro de imóveis das prefeituras quanto nos cartórios de registros de imóveis.

Já as quadras são abstrações compostas por um ou mais lotes contíguos rodeados por logradouros públicos. Portanto, sua divisão é, ao fim e ao cabo, dada pelo sistema viário. O conjunto de quadras em um determinado recorte é chamado de macroparcelamento, em contraste com o microparcelamento, que diz respeito à divisão das quadras em lotes.

Segundo Holston (1993), há quatro tipos de parcelamentos no que diz respeito à sua situação frente à lei: parcelamentos legais (ou regulares), irregulares, clandestinos e grilados. Os parcelamentos regulares são aqueles que passaram por todas as fases de aprovação junto aos órgãos públicos e cumpriram com todos os requisitos, obtendo licença final para sua implementação. Os parcelamentos irregulares são aqueles que, em algum momento, tramitaram pelas vias legais, mas que não cumpriram todas as exigências e, mesmo assim, foram implementados. Já os parcelamentos clandestinos são caracterizados por nunca terem passado por nenhuma parte dos trâmites legais, e terem sido construídos completamente à margem da legislação. Por fim, os grilados são aqueles em que os lotes são negociados e/ou registrados segundo procedimentos fraudados, tais como escrituras falsas ou até mesmo o uso da violência.

Onde é possível parcelar?

A Lei 6766/79 estabelece que o parcelamento para fins urbanos só pode acontecer em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, conforme o que for definido pelo plano diretor municipal. Portanto, ela veda esse tipo de divisão de terras em zonas rurais. Além disso, determina diversas outras situações em que o parcelamento não é permitido, seja por razões ambientais, de saúde pública ou de infraestrutura:

Art. 3º Somente será admitido o parcelamento do solo para fins urbanos em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, assim definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal. (Redação dada pela Lei nº 9.785, de 1999) Parágrafo único – Não será permitido o parcelamento do solo: I – em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas; II – em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde pública, sem que sejam previamente saneados; III – em terrenos com declividade igual ou superior a 30% (trinta por cento), salvo se atendidas exigências específicas das autoridades competentes; IV – em terrenos onde as condições geológicas não aconselham a edificação; V – em áreas de preservação ecológica ou naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis, até a sua correção.

É importante notar, entretanto, que algumas dessas vedações acima podem ser contornadas caso providências sejam tomadas previamente. Por exemplo, quanto às áreas alagáveis, é possível parcelá-las caso tenham sido “tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas.” Isso, obviamente, abre brechas para a urbanização de áreas que, talvez, não sejam propícias à urbanização. Por outro lado, isso pode – e deve – ser impedido pelo plano diretor municipal que, afinal de contas, é o principal responsável pela regulamentação do uso e ocupação do solo urbano.

Modalidades de parcelamento do solo (e alguns conceitos afins)

Segundo a Lei Federal 6766/79, o parcelamento pode acontecer através das seguintes modalidades: – loteamento; – desmembramento; – condomínio de lotes; – loteamento com acesso controlado.

Adicionalmente, há duas modalidades que, a rigor, não são parcelamento do solo segunda definição da Lei 6766/79, mas que são relevantes para esta discussão: o remembramento e o condomínio horizontal. Vamos começar por elas, porque depois iremos mencioná-las quando contrastarmos as formas de parcelamento propriamente dito.

Remembramento

O remembramento trata-se da junção, em um único lote, de dois ou mais lotes previamente constituídos. Ele é realizado especialmente quando há interesse em juntar vários lotes para viabilizar edificações maiores, tais quais edifícios em altura. No entanto, não é uma operação tão comum quanto o loteamento ou o desmembramento, principalmente porque exige que diferentes proprietários concordem em vender seus lotes para uma mesma pessoa.

Condomínio em edificações (ou edilício)

O condomínio edilício é uma modalidade de condomínio regida pela Lei 4.591/1964 na qual a gleba permanece sem parcelamento e as unidades autônomas são residenciais e não residenciais.

Para o nosso caso, interessa um tipo específico que é o condomínio de casas. Nessa modalidade, a construção do condomínio já inclui a construção de todas as casas, que serão compradas ou alugadas, e não há divisão em lotes a serem comprados independentemente. Portanto, não há parcelamento do solo. As áreas comuns são divididas por fração ideal, normalmente proporcionais à área da edificação, da mesma maneira como acontece em condomínios verticais de apartamentos.

A diferença para os condomínios fechados tradicionais é justamente essa: naqueles, o mais comum é que os lotes sejam vendidos separadamente, como unidades imobiliárias autônomas, e depois cada proprietário decide como e o que construir. Nos condomínios de casas, as unidades vendidas são as próprias residências. Isso tende a diminuir, em média, a escala do empreendimento, já que o custo para viabilizar é muito maior do que prover apenas os lotes vazios.

Loteamento

O loteamento é a “subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.” (Lei Federal 6766/79, Art. 2º, § 1º)

Ou seja, quando o processo de parcelamento cria novas ruas, trata-se de um loteamento. Essas novas ruas normalmente são necessárias para prover acesso público a todos os lotes a serem criados.

Processo de divisão de uma gleba em lotes, com abertura de novas vias. Fonte dos dados: Prefeitura Municipal de Palhoça (2012). Mapa elaborado por Renato Saboya.

Por incluir o conjunto ruas – quadras – lotes, os loteamentos são “partes de cidade” quase completas. Alia-se a isso o fato de que, nessa modalidade, o proprietário precisa destinar uma porcentagem do terreno para áreas públicas: além das ruas propriamente ditas, uma porção da gleba será destinada a equipamentos urbanos e comunitários e áreas verdes de lazer.

Portanto, na medida do possível, é do interesse do parcelador evitar a abertura de ruas. Entretanto, muitas vezes Isso não é possível por causa da dimensão da gleba, seu formato e sua posição em relação ao sistema viário pré-existente. Frequentemente, por uma combinação dos três aspectos. Como todos os lotes criados precisam ter acesso por logradouro público, muitas vezes não é possível garantir essa condição sem criar novas vias, especialmente quando a gleba é muito grande e/ou quando os lotes são relativamente pequenos.

Desmembramento

O desmembramento é a “subdivisão de uma gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique na abertura de novas vias e logradouros públicos, nem no prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes.” (Lei Federal 6766/79, Art. 2º, § 2º)

Assim, os desmembramentos costumam acontecer em glebas menores, ou que sejam especialmente bem atendidas por logradouros existentes, ou ainda quando resultam em lotes grandes que podem ser atendidos por poucos logradouros e, assim, aproveitar os já existentes.

Condomínio de lotes

Até 2017 não existia a figura do condomínio fechado na legislação brasileira. A rigor, o parcelamento do solo em lotes só podia ser realizado via loteamento ou desmembramento. Em ambos os casos, todos os lotes deveriam, obrigatoriamente, ter acesso por logradouro (rua) público. Não era o caso dos condomínios fechados, obviamente, nos quais apenas a entrada principal se conecta com um logradouro público, sendo os lotes atendidos por vias internas.

Em 2017, o Código Civil foi modificado para incluir a figura do “condomínio de lotes”:

 Art. 1.358-A.  Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

§ 1º  A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição.

A Lei 6766/79 também foi alterada para permitir essa figura:

§ 7o  O lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)

Nesse formato, os lotes são “unidades imobiliárias integrantes de condomínio de lotes”, ou seja, podem ser compradas e vendidas como um lote convencional em um loteamento normal. As áreas comuns (ruas, calçadas, praças, espaços de uso coletivos, etc.), por outro lado, são divididas por fração ideal.

Na prática, funciona de modo muito parecido com um condomínio vertical tradicional, ou seja, um edifício multifamiliar, ou um condomínio de casas. As unidades imobiliárias como apartamentos e garagens podem ser vendidas separadamente, cada uma com sua matrícula no registro de imóveis, e as áreas comuns são divididas por fração ideal.

Essa figura ainda gera algumas dúvidas, porque a legislação é omissa em relação a muitos aspectos. Por exemplo, não há menção à possibilidade ou restrição a áreas comuns de acesso exclusivo dos moradores, ou à necessidade de que essas áreas sejam localizadas fora dos limites murados. Pelo modo como esses condomínios costumam acontecer, fica implícito que essas áreas seriam localizadas dentro dos muros e acessadas apenas pelos moradores.

Loteamentos com acesso controlado (Lei 6766/1979 – Art. 2º §8º):

§ 8o  Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1o deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados.            (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017) Nota: o parágrafo 1, citado acima, refere-se aos loteamentos “convencionais.”

Esta última figura é uma espécie de híbrido entre o loteamento convencional e o condomínio fechado. Apesar de também haver muitas imprecisões em sua definição, entende-se que seriam loteamentos com abertura de vias e espaços de uso comum acessíveis a todos, desde que os visitantes se identifiquem em algum tipo de guarita ou outro espaço destinado e monitorar o acesso das pessoas.

Também não é difícil imaginar que esse tipo de loteamento possa facilmente ser distorcido para se tornar inacessivel a não moradores, na prática funcionando como condomínios fechados.

Referências

Castello, I. R. (with Observatório das Metrópoles). (2008). Bairros, loteamentos e condomínios: Elementos para o projeto de novos territórios habitacionais (1a ed). Observatório das Metrópoles?: UFRGS Editora.

Holston, J. (1993). Legalizando o ilegal; propriedade e usurpação no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais21(ano 8), 68–89.